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Jornal Caderno Jurídico

Opinião

O desabafo de um jurista

4/9/2024 às 0h34 - César Mariano
Divulgação César Mariano “O direito à livre manifestação do pensamento não tem sido garantido em diversas passagens”, lamenta César Mariano

Nunca pensei que, nestes meus 35 anos de atuação na área Jurídica, fosse vivenciar situações como as ocorridas atualmente.

Não vou narrar todas as decisões, digamos inusitadas, que poderiam render um livro, mas apenas algumas mais “interessantes”.

Um hacker, não se sabe, mas se desconfia, por qual motivo, invade aparelhos de telefonia celular e grava mensagens privadas trocadas entre membros do Ministério Público Federal e um magistrado, que atuavam em uma das maiores operações de combate à corrupção deflagradas no mundo.

Claro que, como sói acontecer em situações desse tipo, as mensagens foram parar nas mãos de um jornalista, que passou a divulgá-las aos poucos em seu jornal.

Essas mensagens criminosamente obtidas, muito embora inadmissíveis processualmente por se tratar de prova ilícita, foram empregadas pela Suprema Corte como um dos fundamentos para reconhecer a parcialidade do então juiz Sérgio Moro. Mesmo com os processos já analisados por um Tribunal de segundo grau e pelo Superior Tribunal de Justiça, que nada de irregular verificaram, praticamente todas as condenações resultantes da Operação Lava-Jato foram anuladas pela Suprema Corte em efeito cascata, sob o fundamento de ser o magistrado suspeito para julgar as causas.

 

Mas não é só

Na Suprema Corte, que tem por função constitucional guardar a Constituição Federal, foi instaurado inquérito judicial, de ofício, e sem sorteio de relator (distribuição) para investigar supostos crimes contra a honra, ameaças e denunciação caluniosa contra seus próprios ministros e familiares, bem como notícias falsas (fake news), sem fatos determinados, que serão apurados a conta-gotas e à medida em que forem surgindo, em flagrante atentado à competência constitucional e violando o princípio do juiz natural e o sistema acusatório de processo.

Mesmo promovido o arquivamento pelo titular da Ação Penal Pública, a Procuradora Geral da República à época, o inquérito prosseguiu, afrontando pacífica jurisprudência do próprio STF no sentido de que o destino do procedimento deveria ser o arquivo por não haver fundamento legal para revisão desta promoção.

Este inquérito “deu cria” e dele derivaram vários outros para apurar fatos indeterminados, que, do mesmo modo, nele são incluídos à medida que forem surgindo, ensejando diversas medidas cautelares decretadas de ofício, o que é vedado pelo ordenamento jurídico, que reconhece o princípio da inércia da jurisdição.

Até mesmo crime foi criado por decisão judicial, empregado analogia in malan partem (homofobia), repudiada por toda a doutrina e jurisprudência pátria, violando o princípio secular da reserva legal (acerca do tema: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/crime-de-homofobia-e-o-supremo-tribunal-federal/1759717157).

Outra decisão, digamos inusitada, foi do TSE, por meio de seu corregedor-geral. Determinou a desmonetização de canais no Youtube, que, segundo ele, estariam propalando notícias falsas que poderiam, em tese, colocar em risco o sistema eleitoral.

Essas notícias nada mais são que a insegurança informática das urnas eletrônicas, fato este admitido pelo próprio Tribunal ao reconhecer que houve invasão por um hacker, que chegou até mesmo ao código fonte e, estranhamente, o arquivo com o caminho percorrido pelo invasor foi apagado por engano.

 

E continua

Aquelas mensagens criminosamente obtidas, absolutamente imprestáveis como prova, por serem manifestamente ilícitas, que contêm conversas não só dos Procuradores da República, mas também, ao que consta, de várias outras autoridades, foram entregues para a defesa de um acusado, que poderia delas dispor e fazer o que bem entender, mesmo que de forma oculta e dissimulada.

Lembro, ainda, que nenhum dos envolvidos admite as conversas em sua totalidade e os celulares com as mensagens não foram periciados ou as conversas foram apagadas, ou seja, não há a autenticação e demonstração de que não houve montagem ou edição para que fosse dado sentido diverso na conversação travada (vide: https: //www.jusbrasil.com.br/artigos/a-ilicitude-probatoria-e-as-mensagens-hackeadas/1860037455?_gl=1*).

 

E piora

O presidente do Superior Tribunal de Justiça, aplicando por analogia a decisão da Excelsa Corte, ao tomar conhecimento pela imprensa de que havia mensagens hackeadas que davam a entender que ministros da Corte estariam sendo investigados, de forma absolutamente ilegal, por membros do Ministério Público Federal, envereda pelo mesmo caminho e, com base em seu regimento interno, de ofício, instaura ele próprio investigação para apurar esses fatos, mesmo podendo deixá-la a cargo da Polícia Federal ou do Ministério Público, Instituições constitucionalmente competentes para fazê-lo. Ao menos essa decisão foi cassada pela Suprema Corte, que não o fez para o inquérito que ela mesmo instaurou.

Contas de redes sociais são bloqueadas a rodo, inclusive de parlamentares, que possuem imunidade material em relação a suas opiniões, palavras e votos, sem que suas falas importem crime, assim entendido o previsto no Direito Penal Objetivo, quando proferidas em razão de suas funções (vide: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/as-imunidades-parlamentares-e-seus-limites/1746880951/amp).

A situação é tão inusitada que nem as mais brilhantes mentes jurídicas conseguem de forma isenta defender essas decisões sob o enfoque constitucional.

Chegamos a um ponto em que alguém pode contratar um hacker para espionar uma pessoa e a prova resultante desse crime ser admitida em juízo, bastando que se aplique analogicamente o que as Cortes Superiores estão a decidir.

A vedação do emprego da prova ilícita é uma das garantias processuais de quaisquer das partes, resultante de longo amadurecimento do sistema judiciário, a fim de que, notadamente o Estado, não viole direitos fundamentais, como a intimidade e integridade física de alguém, para obtenção da prova a qualquer custo.

Obter uma prova de maneira criminosa, mediante violação da intimidade de várias autoridades, inclusive do presidente da República e seus ministros, colocando em risco a segurança nacional, impede o aproveitamento processual dessas mensagens, inclusive em benefício do réu, sob pena de atos desse tipo se repetirem na busca de elementos para a anulação de algum processo.

Saliento, inclusive, que a recente Lei de Abuso de Autoridade tipifica como crime não só a obtenção de prova por meio manifestamente ilícito em procedimento de fiscalização ou investigação, mas também seu emprego processual, com prévio conhecimento de sua ilicitude, em desfavor do investigado ou fiscalizado (artigo 25), o que nos leva a crer que as mensagens criminosamente obtidas pelo hacker não poderão ser empregadas em desfavor dos membros do Ministério Público Federal, uma vez que quase todo brasileiro sabe de sua ilegalidade (vide: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/lei-de-abuso-de-autoridade-e-suas-premissas-basicas/1824997851/amp).

 

Que isenção se espera?

São magistrados que investigam, determinam medidas cautelares de ofício, e até mesmo expedem mandados de prisão, que, não obstante serem vítimas, julgarão seus ofensores, como se isso fosse processualmente possível e moralmente admitido. Que isenção se espera de um magistrado que investiga e julga seu ofensor? Por isso, existem os institutos do impedimento e da suspeição. A questão é tão séria e grave que um dos crimes de responsabilidade que pode ser imputado a um Ministro do Supremo Tribunal Federal e resultar em seu impeachment é a prolação de decisão, quando por lei, seja suspeito na causa (artigo 39, 2, da Lei número 1.079/1950) Acerca do tema: (https://www.jusbrasil.com.br/artigos/suspeicao-e-impedimento-de-magistrado/1852558163).

Tudo isso que está a ocorrer poderia ter sido evitado se as investigações sobre as notícias falsas e os chamados atos antidemocráticos tivessem sido conduzidas pela Polícia Federal ou pelo Ministério Público, como determina a Constituição Federal e a Legislação Processual. Lembro, aliás, que foi promovido o arquivamento desse procedimento pela então Procuradora-Geral da República por ser absolutamente ilegal, promoção que não foi acolhida pelo Pretório Excelso, em desconformidade com sua própria jurisprudência. E, também, que provas manifestamente imprestáveis por serem ilícitas e não autenticadas fossem desconsideradas, o que até então sempre ocorreu por decisões das Cortes Superiores.

 

Sistema acusatório ferido de morte

Foi ferido de morte o sistema acusatório de processo em que há nítida divisão entre o órgão acusador e julgador para que seja mantida a isenção necessária daquele que dará a palavra final ao processo. E pior, são as próprias vítimas que estão investigando os crimes supostamente cometidos contra si. Isso sem contar que este inquérito, apodado de “inquérito do fim do mundo”, aberto até hoje, vai investigando fatos à conta-gotas na medida em que forem surgindo. E deste procedimento surgiram outros, que até mesmo produziram investigações secretas, de modo que os advogados não tiveram acesso a todas as provas ou ele foi sensivelmente dificultado.

Desse fato esdrúxulo decorreram muitos outros que aos poucos foram surgindo durante o trâmite dessa famigerada investigação. Difícil foi explicar o ocorrido para meus alunos de Direito, que podem achar que os estou ensinando errado.

 

Ativismo judicial

Outra anomalia jurídica é o denominado ativismo judicial, que, por mais que se negue, desponta de forma inquestionável em diversos episódios ocorridos no decorrer dos anos, notadamente durante o governo anterior.

Não cabe à Suprema Corte implementar políticas públicas e invadir competência discricionária do Governo Federal, cujo representante máximo foi eleito para tanto.

A gestão da pandemia pelos Estados, contrariando lei expressa que dava ao governo federal essa atribuição de forma geral, bem como a própria Constituição Federal, que determina caber à União instituir as regras gerais na gestão da saúde, é um dos exemplos marcantes de ativismo judicial.

Outro exemplo notório foi a cassação da nomeação do diretor da Polícia Federal, Alexandre Ramagem, de competência exclusiva do presidente da República, no mandato do então presidente Bolsonaro.

Na área da Segurança Pública, cuja competência é, em regra, dos Estados, o Pretório Excelso chegou a proibir operações policiais regulares nas comunidades do Rio de Janeiro, limitando-as a situações excepcionais, atividade típica esta dos órgãos de segurança pública e não de magistrados, sem praticamente nenhum conhecimento sobre o tema.

Há, também, julgamentos de processos em andamento que pretendem a liberação do aborto até determinado mês de gestação e do consumo de drogas, matérias estas que devem ser discutidas e apreciadas pelos representantes do povo eleitos para essa finalidade.

Não concordo e nunca defenderei nenhum tipo de ataque às Instituições ou a seus membros, e tampouco ilegalidades de qualquer ordem, mas os fins nunca poderão justificar os meios.

Sobre esses temas escrevi tantos artigos em veículos de comunicação que sequer me lembro de todos, que certamente se encontram na Rede.

Em um desses artigos, publicado no Estadão no dia 18 de junho de 2020, com o título “Não existe a figura do juiz investigador, os fins não justificam os meios”, já alertava a respeito do famigerado inquérito judicial:

“Será que ainda ninguém percebeu que a validade desse tipo de investigação poderá levar até mesmo a decisões no sentido de ser prescindível a presença do Ministério Público em investigações criminais, que, de acordo com a lógica adotada pelo STF, poderão ser instauradas por qualquer Tribunal, quando envolver infrações penais que o atinjam diretamente ou a seus Membros, como ameaças e ofensas a seus integrantes?

Causa espécie que tudo isso tenha ocorrido sem qualquer oposição da comunidade jurídica em geral, que, pelo contrário, aplaude medidas absolutamente inconstitucionais e ilegais, violadoras de direitos e garantias fundamentais, de acordo com a doutrina e jurisprudência absolutamente pacíficas.

Apurar crimes, sim. Ninguém em sã consciência e que esteja de boa-fé pode compactuar com atos contrários à democracia ou que impliquem crime de qualquer espécie. No entanto, não é possível, a pretexto de apurar eventuais delitos cometidos contra o sistema democrático e membros da Excelsa Corte, deixar de se observar os princípios e regras constitucionais que preservam a regularidade das investigações e, por consequência, a garantia de produção probatória isenta de vícios, que poderão fundamentar eventual propositura de uma Ação Penal.

Em Direito, os fins nunca podem justificar os meios” (endereço para acesso: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/nao-existe-a-figura-do-juiz-investigador-os-fins-nao-justificam-os-meios/).

O regime democrático de direito se fundamenta na observância dos princípios e regras constitucionais, que são os alicerces de todo nosso ordenamento jurídico. A partir do momento em que o sistema constitucional e legal não é observado, situações anômalas tendem a ocorrer e a piorar cada vez mais, levando a decisões esdrúxulas e sem fundamentos sólidos, causando instabilidade e insegurança jurídica, o que não é nada bom para os membros da sociedade.

A mais grave consequência disso tudo é que uma pessoa condenada em três instâncias tem suas condenações e processos anulados por vícios formais e é eleita para administrar o país, o que, decerto, ficará muito difícil de explicar para meus netos e alunos. Sobre este tema, aliás, escrevi artigo para a Jusbrasil, com o título de “Afinal, Lula foi mesmo considerado inocente” (acesso: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/afinal-lula-foi-mesmo-considerado-inocente/2190748855?_gl=1*ihw2t1*_ga*).

Isso sem contar que há pessoas sem prerrogativa de foro processadas e condenadas pela Excelsa Corte por crimes contra o Estado Democrático de Direito (https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-julgamento-dos-atos-de-08012023/1977150457?_gl=1*wpob9c*_ga*) a penas elevadíssimas sem que tivessem a conduta individualizada, de baciada, violando princípios básicos e fundamentais de Direito Constitucional, Penal e Processual Penal, como cansei de escrever, falar e dar entrevistas. Em um dos vídeos gravados no meu canal no Youtube falo sobre a injustiça de se condenar com acusações genéricas, afrontando expressamente a teoria finalista da ação do Direito Penal em que a intenção ao se praticar determinada conduta deve estar devidamente descrita e demonstrada na sentença penal condenatória (vide: https://youtu.be/CD-mtUTY0b4?si=VJZKxH8Qhiy_dkZG).

E, em sentido diametralmente oposto, quando se trata de crimes realmente graves, como o tráfico de drogas e patrimoniais (roubo, extorsão etc.), as regras processuais são observadas com lupa e o Direito Penal aplicado da forma mais branda possível, com o claro objetivo de esvaziar o sistema prisional, como afirmado por ministros da Suprema Corte, que externaram esse objetivo, visando a “redução da criminalidade” (sobre o tema: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-crescente-aumento-da-criminalidade-e-o-discurso-equivocado-da-vitimizacao-social-do-marginal/1912655598).

Enfim, tempos estranhos estamos a viver em que fico até receoso em escrever este texto e ser mal interpretado, mesmo estando a exercer de forma técnica e isenta o direito à livre manifestação do pensamento, que, infelizmente, não tem sido garantido em diversas passagens na atualidade (vide: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/cale-se-ou-esteja-preso/1842188356).

 

César Dario Mariano da Silva é Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP). Especialista em Direito Penal (ESMP-SP). Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.

Artigo publicado no jornal impresso de sexta-feira, 12 de julho de 2024.

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