Direito Penal e Processual Penal
Boate Kiss (parte2): Justiça Penal para quem? Quem punir?
É tempo de rever conceitos, de mergulhar em reflexões, de “enfiar a cara” nos livros de doutrina, de revisar textos de outrora, de aprimorar a capacidade intelectiva de “pensar o direito”, enfim... Há um ano, publicamos um texto neste respeitável jornal com o título: Justiça Penal para quem? Quem punir?
Nosso objetivo consistiu na análise sobre a imputação da sanção jurídico-criminal ao sujeito que delinquiu e os consectários da pena.
Como de costume, fizemos uma brevíssima contextualização histórica das formas de punição e narramos o atual modelo de leitura do Código Penal e Código de Processo Penal à luz da Constituição Federal de 1988.
Também analisamos o caso da Boate Kiss, mais especificamente alguns pontos da sentença que fixou as penas em razão da condenação pelo Conselho de Sentença do Tribunal do Júri.
Hoje, entretanto, embora o Júri tenha sido anulado pela 1ª Câmara Criminal do TJ-RS, se faz necessário nos debruçarmos novamente sobre o tema, não sobre o caso em si, pois ainda está pendente de julgamento em razão de recurso interposto pelo Ministério Público perante o Superior Tribunal de Justiça, mas sobre o texto ao qual nos referimos no 1º parágrafo.
Naquele período, dizíamos nós: “Na sentença (processo número 001/2.20.0047171-0), o Juiz de Direito, Orlando Faccini Neto, observou: ‘nos casos da perda de entes, como no caso presente, a pena criminal há de comunicar aos familiares, pais e mães enlutados, o grau de respeito que lhes devota o Estado, de maneira que arriscar o esquecimento destes dramas pessoais gerados pela prática de um crime implicaria justamente no oposto, ou seja, numa demonstração de que a ordem jurídica não está a compreender a vítima, o sujeito violado, com o devido respeito e consideração’. O juiz prolator ainda mencionou: ‘quem, num exercício altruísta, por um minuto apenas buscar colocar-se no ambiente dos fatos haverá de imaginar o desespero, a dor e o padecimento das pessoas que, na luta por sua sobrevivência, recebiam, todavia, a falta e a ausência de ar, os gritos e a escuridão’, - e aqui entra o trecho da decisão que se tornou o tema deste texto - [em termos tão singulares que não seria demasiado qualificar-se tudo o que ali foi experimentado ao modo como assentado pela literatura, “o horror, o horror”]. ‘Esses trechos parecem justificar, fundamentar e controlar a racionalidade da decisão dos jurados e o quantum da pena fixada aos acusados”.
A literatura à qual o magistrado se referiu foi “ao filme Apocalipse Now e ao livro de Joseph Conrad, o Coração das Trevas” [excerto extraído da sentença supramencionada].
Feitas estas considerações introdutórias, passamos à análise jurídica daquilo que outrora afirmamos como justificativa, motivação e controle da racionalidade da decisão do Estado-juiz.
O dever de motivação das decisões judiciais decorre da Constituição Federal de 1988 (cf. art. 93, IX: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”), do Código de Processo Civil de 2015 (cf. art. 489, § 1º e incisos) e do Código de Processo Penal (cf. art. 315, § 2º e incisos).
Ora bem, se uma decisão é prolatada por um juiz enquanto “ser no mundo”, é evidente a possibilidade de que decisões omissas, obscuras, contraditórias ou errôneas [do ponto de vista material] sejam proferidas. Para tanto, o legislador dotou o jurisdicionado de instrumentos jurídico-recursais para um “segundo olhar” do Poder Judiciário sobre o litígio posto entre as partes de um processo.
Pelo princípio da falibilidade humana, portanto, permitiu-se, por exemplo, a oposição dos Embargos de Declaração direcionado ao magistrado que em 1º grau de jurisdição decidiu de modo obscuro, omisso e/ou contraditório; a interposição – perante o respectivo Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal – das variadas espécies recursais previstas nos Códigos de Processo Civil e Penal para o rejulgamento da lide; e ainda, o acesso ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal para apreciação da aplicação do direito – infraconstitucional e constitucional, respectivamente –, padronização e definição da inteligência da norma jurídica.
Fundamentar a decisão, como exige a Constituição, “é apresentar, racionalmente, as bases fáticas e jurídicas da decisão” (MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil comentado. 8 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 634). Segundo o autor, “trata-se de um ato de inteligência, declaração e resposta. Como ato de inteligência, envolve a exposição de como o juiz chegou à norma com base na qual o problema haverá de ser solucionado e de como o juiz compreendeu os fatos, à luz das alegações das partes e das provas. Trata-se de dar uma resposta às partes, como é evidente, e também permitir que o rigor do raciocínio desenvolvido na decisão possa ser submetido ao controle de outras instâncias judiciais. O alto grau de indefinição dos fatos sociais e do direito acaba deslocando para o processo o momento em que se revela com exatidão o sentido da norma, de modo que seu significado mais preciso é obtido ao se interpretar/aplicar o direito aos fatos. A declaração veiculada na decisão judicial, assim, desempenha função relevante para a segurança do direito, na medida em que contribui para a construção do sentido da norma jurídica. Nesse contexto, as decisões judiciais passam a ocupar papel importantíssimo, impondo-se que se apresentem de modo estruturado e organizado, a fim de que se construa uma jurisprudência íntegra”.
Nota-se, contudo, que o “caminho a ser percorrido” pelo juiz até “chegar” à decisão judicial é longo, pois envolve o “tomar conhecimento dos fatos” com base na consistência do relato contextual e dos argumentos das partes, a “definição jurídica” da norma a ser aplicada ao caso concreto, e a “imputação da sanção jurídica” que recairá sobre a parte “perdedora” no processo. É válido destacar que, diferentemente do Direito e Processo Civil onde a sanção jurídica afeta o patrimônio do “perdedor” (leia-se, sucumbente), em processos de natureza criminal, a sanção recai sobre o mundo do “ser”, cerceando a liberdade de ir e vir daquele que delinquiu e restou condenado no processo.
Com a competência processual que lhe é própria, Aury Lopes Jr. leciona que “no modelo constitucional não se admite nenhuma imposição de pena: sem que se produza a comissão de um delito; sem que ele esteja previamente tipificado por lei; sem que exista necessidade de sua proibição e punição; sem que os efeitos da conduta sejam lesivos para terceiros; sem o caráter exterior ou material da ação criminosa; sem a imputabilidade e culpabilidade do autor; e sem que tudo isso seja verificado por meio de uma prova empírica, levada pela acusação a um juiz imparcial em um processo público, contraditório, com amplitude de defesa e mediante um procedimento legalmente preestabelecido” (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 18 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. p. 960), de modo que, no âmbito da decisão, Aury aduz: “a fundamentação serve para o controle da racionalidade da decisão judicial. Não se trata de gastar folhas e folhas para demonstrar erudição jurídica (e jurisprudencial) ou discutir obviedades. O mais importante é explicar o porquê da decisão, o que levou a tal conclusão sobre a autoria e materialidade. A motivação sobre a matéria fática demonstra o saber que legitima o poder, pois a pena somente pode ser imposta a quem – racionalmente – pode ser considerado autor do fato criminoso imputado” (op. cit., p. 961).
Sendo o Tribunal do Júri previsto pela Constituição (CF, art. 5, inciso XXXVIII), não se há de questionar a condenação pelo Conselho de Sentença. O objeto desta análise consiste em demonstrar, sumariamente, a importância da fundamentação da decisão judicial.
A sentença proferida pelo Dr. Orlando no Caso da Boate Kiss, com 44 laudas e 63 notas de rodapé foi, sem dúvidas, amplamente fundamentada, sobretudo em se tratando da premissa da acusação que versou, em suma, sobre a imputação do dolo eventual dos quatro acusados.
Em outro estudo de nossa autoria, com o título: Dolo Eventual: uma análise da sentença do Tribunal do Júri da Boate Kiss à luz da doutrina penal contemporânea, (publicado nos anais: file:///C:/Users/Usuario/Downloads/27635.html), em que estudamos o dolo eventual sob o perspectiva jurídica de renomados autores brasileiros, “verificamos que a análise resultou na congruência da fundamentação da sentença em comparação à doutrina contemporânea em matéria penal”, porquê, “embora o dolo eventual não esteja, expressamente, previsto no Código Penal Brasileiro, a doutrina o consagra como uma modalidade dolosa em matéria criminal. A menção do juiz prolator a ausência de oposição interna do autor, parece-nos assemelhar-se à posição doutrinária de que, a indiferença do agente frente aos dados colaterais que se afiguram possíveis, faz com que este assuma, deliberadamente, o risco de produzir o resultado danoso às suas vítimas”. Neste ponto, ademais, é imperioso dar-se destaque ao artigo 18, inciso I, do Código Penal: “Diz-se o crime: I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.
Nesta ligeira síntese conclusiva, é possível ver, contudo, que não apenas o excerto extraído do texto publicado neste jornal em 2022, justifica, fundamenta e controla a racionalidade da decisão judicial, mas o seu todo, com advertência ao sistema recursal, ingresso no campo de fixação das penas, apontamento das razões doutrinárias e jurisprudenciais com aprofundada fundamentação jurídica.
Numa última palavra, o Direito deve ser (re)pensado, refletido e aprimorado. Esta é uma missão dos operadores e sobremaneira do jurista.
A segurança jurídica como corolário do Estado de Direito exige que as decisões judiciais sejam responsavelmente fundamentadas.
Do mesmo modo que a sociedade evolui a todo momento, esse importante instrumento de promoção da justiça e de adaptação social que tem como diferencial a possibilidade de utilização do uso da força coercitiva do Estado, há de acompanhar a evolução e a velocidade em que vivem os jurisdicionados.
Gleison do Prado de Oliveira é acadêmico de Direito, graduado em Ciências Contábeis, com pós em Gestão Pública e Direito Tributário.
Texto iniciado em 20 de julho de 2023 e concluído na manhã do dia seguinte.
Publicado no jornal impresso de 28/7/2023, página 8.