Direito Penal e Processual Penal
Justiça Penal para quem? Quem punir?
Desde os tempos mais remotos, inúmeras foram as tentativas de definição sobre há quem atribuir a sanção pelo resultado do ato ilícito praticado. No século XVIII a. C., o rei da Babilônia, Khammu-Rabi, “governou uma confederação de cidades-estado” ao ampliar significativamente o seu império. Para tanto, editou o Código de Hamurabi. Nesse conjunto de leis antigas, as punições foram divididas em três diferentes classes sociais. A primeira, era composta por homens livres, vale dizer, nobres de alta classe que mereciam quantias mais abastadas ao serem ofendidos, injuriados e retaliados. No estágio seguinte, haviam os “mushkenum”, cidadãos livres que gozavam de menor status social e eram sujeitados a deveres e obrigações mais leves. Em terceiro lugar, o cidadão discriminado, escravo marcado, que, no entanto, podia ter propriedade. (Código de Hamurabi, 2ª edição, 2012, páginas 9 e 10). Essas eram as três classes sobre as quais recaiam diferentes tipos de pena.
Séculos se passaram e hoje a Constituição Federal de 1988 aparenta transmitir uma ideia de Direito Penal humanitário, voltado a garantir os direitos fundamentais daquele que delinquiu. Essa definição apresenta-se de acordo com a evolução do nosso Estado Democrático, concebido e estruturado segundo a evolução da humanidade e de acordo com o plano da legislação internacional.
Para falar em Direito Penal, há que se destacar sinteticamente algumas qualidades substanciais e processuais que regulam a matéria. Nesse sentido, o Direito Penal enquanto substância, nos dizeres de Cezar Roberto Bitencourt, “é sancionador, uma vez que protege a ordem jurídica cominando sanções” (Tratado de Direito Penal, 27 edição, 2021, página 47). Por outro lado, para que a sanção jurídica seja imputada ao agente infrator, é necessário que haja o processo. Este, por sua vez, ostenta as “regras do jogo”, ou seja, um instrumento de imputação da sanção jurídica frente a lesão do bem jurídico violado.
Diferentemente do Direito Civil, onde a sanção jurídica recai sobre o mundo do “ter”, no Direito Penal, a respectiva sanção afeta diretamente o mundo do “ser”, cerceando a liberdade de locomoção do ser humano (Jonatas Luiz Moreira de Paula, Teoria da Jurisdição Cível, 2020, páginas 127-150). Nesse contexto, saber exatamente quem punir é fundamental para que a dignidade humana não seja violada, dissipada e desrespeitada.
É importante “compreender que o respeito as garantias fundamentais não se confundem com impunidade” (Aury Lopes Jr., Curso de Direito Processual Penal, 18ª edição, 2021, página 37). Punir é fundamental, é necessário e civilizatório. Todavia, é preciso saber quem punir!
A prisão desmedida, fruto de uma perseguição inquisitória é, não raras vezes, tirana. Por tirania, Dallagnol entende ser o “uso do poder além do direito” (A Luta contra a Corrupção, 2017, página 57). Nesse mesmo cenário, Beccaria ao se lembrar de Montesquieu, proferiu as seguintes palavras: “toda pena que não advier de uma absoluta necessidade é tirânica” (Dos Delitos e Das Penas, 2012, página 13).
Nessa perspectiva, a atuação do Estado Democrático de Direito surge como instrumento destinado a não permitir a tirania e opressão do antigo modelo estatal, de modo a suprimir as arbitrariedades e os excessos que impeçam o ser humano de viver com dignidade.
O complexo caso da Boate Kiss
Para ilustrar o quadro sobre quem punir, façamos uma análise do complexo caso da Boate Kiss. Com efeito.
No dia 27 de janeiro de 2013, um incêndio na Boate Kiss matou 242 pessoas e deixou 636 feridas. O fato ocorreu na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Os acusados pelo Ministério Público foram os dois sócios da boate. Elissandro Callegaro Spohr, mais conhecido como Kiko e Mauro Londero Hoffmann. Os outros dois acusados foram o vocalista da banda que tocava na noite da tragédia, Marcelo de Jesus dos Santos e o auxiliar da banda, Luciano Bonilha Leão.
A acusação versou desde o início sobre o designado dolo eventual. Segundo Rogério Greco, nessa modalidade dolosa “o agente, embora não queira diretamente o resultado, assume o risco de vir a produzi-lo” (Código Penal comentado, 15ª edição, 2022, páginas 62 e 63). Essa definição mostra-se clara, sucinta e objetiva frente ao artigo 18 do Código Penal brasileiro ao dispor sobre o crime doloso.
Depois de quase uma década, o julgamento, enfim, teve início no dia 1º de outubro de 2021 e levou dez dias para que os réus fossem condenados pelo Conselho de Sentença do Tribunal do Júri. Depois de avaliarem as circunstâncias peculiares do caso, como o disparo de artefato pirotécnico por um integrante da banda, a omissão e indiferença dos empresários e sócios da boate, as consequências para a comunidade de Santa Maria, o número de homicídios consumados e o exacerbado número de pessoas feridas, o processo terminou na condenação em 22 anos e seis meses de reclusão para Elissandro, 19 anos e seis meses para Mauro e Marcelo e Luciano com 18 anos de reclusão. Todos em regime inicial fechado.
Após a prolação da sentença, inúmeras foram as manifestações sobre o modo de se pensar e fazer a justiça. Em meio a juristas e doutrinadores, o cidadão comum também emitiu seu “parecer” sobre o resultado final do processo, destacando, inclusive, que o polo passivo da relação processual deveria estar composto por outras instituições, além dos quatro condenados. Foi possível observar comentários sobre a necessidade de investigar e punir o Poder Público Municipal, representado pelo prefeito e seus secretários, pela ausência de fiscalização; o Corpo de Bombeiros, por permitir que a boate funcionasse na situação que se encontrava – algumas vezes, sem extintores; o representante do Ministério Público, por falhar na missão de “Fiscal da Lei”; e o responsável pela empresa que vendeu os artefatos à granel, sem as devidas instruções de uso.
É certo que o sistema penal brasileiro possui algumas funções que podem ser delimitadas com a finalidade punitiva, preventiva e ressocializadora. Mas é certo dizer que os agentes citados acima deveriam sentar no banco dos réus a fim de que a punibilidade gerasse o caráter preventivo para a fiscalização nas demais boates de todo o território nacional? Ademais, tampouco seria correto punir os quatro réus na proporção da pena atribuída a cada qual? Para encerrar os questionamentos, invertamos a chave: seria incorreto isentar os acusados da pena sobre eles imposta? Puniram do jeito certo? Os agentes certos?
Na sentença (processo número 001/2.20.0047171-0), o Juiz de Direito Orlando Faccini Neto observou: “nos casos de perda de entes, como no caso presente, a pena criminal há de comunicar aos familiares, pais e mães enlutados, o grau de respeito que lhes devota o Estado, de maneira que arriscar o esquecimento destes dramas pessoais gerados pela prática de um crime implicaria justamente no oposto, ou seja, numa demonstração de que a ordem jurídica não está a compreender a vítima, o sujeito violado, com o devido respeito e consideração”. O juiz prolator ainda mencionou: “quem, num exercício altruísta, por um minuto apenas buscar colocar-se no ambiente dos fatos haverá de imaginar o desespero, a dor e o padecimento das pessoas que, na luta por sua sobrevivência, recebiam, todavia, a falta e a ausência de ar, os gritos e a escuridão”. Esses trechos parecem justificar, fundamentar e controlar a racionalidade da decisão dos jurados e o quantum da pena fixada aos acusados.
Embora nosso sistema penal seja regido por Códigos de 1940, as reformas pontuais acompanhadas, acima de tudo, da recepção pela Constituição Federal de 1988, denota que o sistema brasileiro de justiça busca garantir a aplicação de uma pena justa e proporcional aos agentes dissipadores do bem jurídico tutelado.
É evidente que o trabalho intenso dos operadores, juristas e doutrinadores do Direito Penal há de contribuir para a construção de novos parâmetros de controle e efetivação da investigação, decisão judicial e cumprimento da sentença, com vistas a assegurar as funções precípuas da pena: punitiva, preventiva e ressocializadora.
O cuidado no ato de imputar uma sanção jurídica sobre o mundo do “ser” haverá de ser repensado. Aqui, referimo-nos a atuação do Ministério Público e advogados das vítimas no momento de acusar, dos advogados dos acusados ao chamar ao processo indivíduos ou instituições para compor o polo passivo da ação e do magistrado ao prolatar uma decisão condenatória.
É demasiada a responsabilidade dos operadores do Direito que atuam área. Retirar a liberdade de alguém é subtrair uma fatia do tempo enquanto passagem existencial. Um tempo que não volta, que não espera e não retroage.
Façamos bom uso do Direito Penal enquanto não houver meios mais eficientes de afastar o caos, harmonizar o convívio e reinserir o ser humano na sociedade.
Gleison do Prado de Oliveira é acadêmico de Direito, graduado em Ciências Contábeis com pós em Gestão Pública e Direito Tributário.
Artigo está nas páginas impressas do Caderno Jurídico, de 30 de junho de 2022.
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