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Jornal Caderno Jurídico

Direito Penal e Processual Penal

O “juiz das garantias” no CPP

12/3/2021 às 18h03 | Atualizado em 12/3/2021 às 18h16 - José Bruno
Divulgação José Bruno José Bruno compartilha a afirmação do ministro Fux: o juiz das garantias pode gerar uma completa desorganização do sistema de justiça criminal

A lei número 13.964, de 24/12/2019, cujo objetivo principal é aperfeiçoar a legislação penal e processual penal, trouxe uma série de inovações a esses diplomas normativos. Uma das inovações mais discutidas se refere ao “juiz de garantias”, acrescentado no rol das disposições constantes no título I, do decreto-lei 3.689, de 3/10/41 (Código de Processo Penal).

Apesar de a terminologia “juiz de garantias” ter ocupado o centro das discussões, principalmente pela ação de influenciadores digitais, que tentaram trazer à luz a eventual e malévola influência política na propositura dessa alteração legislativa, é importante registrar que essa temática não é novidade no debate jurídico, pois a expressão “do juiz de garantias” é o nome atribuído ao capítulo II, pertencente ao título II (da investigação criminal), do Projeto de Lei 8.045/2010, que nada mais é do que o projeto do novo Código de Processo Penal (CPP).

Em se tratando de “juiz de garantias”, de início, o artigo 3º-A, do CPP, registra que “o Processo Penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

Logo adiante, o artigo 3º-B, após uma definição legal genérica, elenca as competências específicas nestes termos: “O juiz de garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente:

 

I – receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do artigo 5º da CF;

II – receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no artigo 310 deste Código;

III – zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo;

IV – ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal;

V – decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo;

VI – prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no 1º caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente;

VII – decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência;

VIII – prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo;

IX – determinar o trancamento do inquérito quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento e; X – requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação.

Também temos:

XI – decidir sobre os requerimentos de:

a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação;

b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico;

c) busca e apreensão domiciliar;

d) acesso a informações sigilosas e;

e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado;

XII – julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;

XIII – determinar a instauração de incidente de insanidade mental;

XIV – decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do artigo 399 deste Código;

XV – assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento;

XVI – deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia e;

XVII – decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação.

 

Ainda de acordo com o artigo 3º-B, “se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada” (§ 2º).

No artigo 3º-C, a competência do “juiz de garantias” abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa, de forma que, recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento (§ 1º). As decisões do “juiz de garantias” não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de dez dias (§ 2º).

Os autos que compõem as matérias de competência do “juiz de garantias” ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do MP e da defesa e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado (§ 3º), sendo que fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo de garantias (§ 4º).

Outra relevante previsão legal é disposta no parágrafo único, do artigo 3º-D, que, em síntese, versa sobre matéria de organização judiciária. Vejamos: “Nas Comarcas em que funcionar apenas um juiz, os Tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados”. E, nesse sentido, ““o juiz de garantias” será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do DF, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo Tribunal” (artigo 3º-E).

O “juiz de garantias” deverá assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com a imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal (artigo 3º-F, caput).

O legislador dispôs que, “por meio de regulamento, as autoridades deverão disciplinar, em 180 dias, o modo pelo qual as informações sobre a realização da prisão e a identidade do preso serão, de modo padronizado e respeitada a programação normativa aludida no caput deste artigo, transmitidas à imprensa, assegurados a efetividade da persecução penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa submetida à prisão”.

 

Liminar barra a nova figura do juiz

No entanto, segundo o magistério de Nucci2 (2020), o relator da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.299-DF, ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, em 22/1/2020, suspendeu a vigência dos artigos 3º-A a 3º-F, todos relacionados à nova figura do juiz. Dessa forma, embora a lei 13.964/2019 tenha entrado em vigor em 23/1/2020, os referidos artigos foram suspensos, por prazo indeterminado, até que o plenário do STF avalie o mérito da causa. Segundo o jurista, isso não significa a revogação desses artigos ou a declaração de mérito, no sentido da sua inconstitucionalidade. O ministro Fux utilizou basicamente dois argumentos:

 

a) As normas do juiz de garantias, na essência, constituem regras de organização judiciária, cabendo ao próprio Judiciário manejá-las, citando o artigo 96 da Constituição.

b) A efetiva criação do juiz de garantias exigiria gasto por parte do Judiciário, sendo constatada a ausência de dotação orçamentária prévia para tanto, invocando o artigo 169 da Constituição.

 

O ministro acentuou que “(...) para a instituição do juiz das garantias, em vez de se produzir uma política pública integrativa com a participação dos entes interessados, promove-se uma mudança estrutural no Poder Judiciário por meio da aprovação de uma regra de impedimento processual, a qual, embora de efeitos aparentemente sutis, encontra-se apta a gerar a completa desorganização do sistema de justiça criminal. Na prática, criaram-se dois novos órgãos – juízos das garantias e juízo da instrução – por meio de uma regra de impedimento processual, o que abreviou indevidamente uma discussão legislativa que deveria ter tomado amplitudes equivalentes aos seus impactos”.

Diante dessa cisão entre “juiz das garantias” e juiz da instrução processual, cunhada sob a justificativa de que há certa “(...) presunção de que os juízes que acompanham investigações tendem a produzir vieses que prejudicam o exercício imparcial da jurisdição, especialmente na fase processual penal”, o ministro Fux arremata: “(...) A existência de estudos empíricos que afirmam que seres humanos desenvolvem vieses em seus processos decisórios não autoriza a presunção generalizada de que qualquer juiz criminal do país tem tendências comportamentais típicas de favorecimento à acusação. Mais ainda, também não se pode inferir que a estratégia institucional mais eficiente para minimizar eventuais vieses cognitivos de juízes criminais seja repartir as funções entre o juiz das garantias e o juiz da instrução. Defensores desse argumento sequer ventilam eventuais efeitos colaterais que esse arranjo pode produzir, inclusive em prejuízo da defesa”.

Na tentativa de salvaguardar direitos e garantias fundamentais expressamente previstos na CF, fazendo-se, inclusive, a separação entre o juiz responsável pela proteção da legalidade durante a fase da investigação criminal até o recebimento da denúncia ou queixa e o juiz da instrução e julgamento, instalou-se mais uma celeuma no cenário jurídico e na opinião pública. De fato, apenas o tempo exporá a efetividade, ou não, dessa inovação legislativa, particularmente no que diz respeito aos reflexos da criação de novas diretrizes processuais e seu respectivo impacto no mandamento da duração razoável do processo, também ostentado na redação constitucional (artigo 5º, LXXVIII).

 

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1O inteiro teor do projeto de novo Código de Processo Penal pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=490263. A propósito, o registro da última ação legislativa indica que o citado projeto encontra-se na Comissão Especial do Código de Processo Penal desde 4.12.2019, em regime de tramitação especial.

 

 

2NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

 

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Artigo publicado no jornal impresso de fevereiro de 2021 (circulação a partir de 26/2/2021. Caderno Jurídico encartado no jornal Coluna D'Oeste, edição 710, de 26/2/2021). Acesse também www.jornalcoluna.com.br.

 

José Bruno Martins Leão é graduado em Direito, Filosofia e Letras. Advogado especialista em Análise Criminal, Direito Penal e Processual Penal, Docência Jurídica e Gestão em Segurança Pública.

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