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Jornal Caderno Jurídico

Direito Penal e Processual Penal

OAB "criminaliza" a violação de sigilo de advogado. Boato ou enunciação legítima?

10/8/2020 às 12h38 - José Bruno
Divulgação José Bruno “É tarefa árdua escalar os desnivelados e sinuosos degraus da Justiça e, ao mesmo tempo, ter de suportar o peso dos grilhões”, ressalta José Bruno

Estimadíssimo leitor, imagine, por um só momento, que um relevante direito seu fora flagrantemente violado ou está na iminência de sê-lo, e, por conseguinte, você necessita, com urgência, de um profissional qualificado do Direito que lhe dê toda a assistência jurídica com o objetivo de retirá-lo desta celeuma ou, ao menos, amenizar os efeitos traumáticos decorrentes de eventuais ilegalidades perpetradas por um terceiro, seja ele um particular ou, ainda, o próprio Estado.

Porém, no transcorrer desta árdua empreitada, aquele em que você acoroçoadamente deposita os seus resquícios de esperança simplesmente é impedido de entrar em determinadas repartições públicas com o intuito de obter informações fundamentais para sua defesa, ou é surpreendido com uma prisão arbitrária, em delegacias ou em salas de audiência, sendo até mesmo algemado e colocado em compartimento traseiro de viatura de polícia, pelo simples fato de agir com destemor durante o exercício da profissão, com vistas à preservação daquele seu tão sagrado direito. Esse cenário dantesco, a princípio, aparenta ser apenas um enredo ficcional, fruto de uma mente bastante criativa, mas revela alguns dos dissabores rotineiros enfrentados por diversos advogados atuantes no país do: “você sabe com quem está falando?”

Não é de se estranhar que a instituição a que pertença esse profissional, neste caso a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), decida tornar público o seu repúdio em relação a certas práticas ilegais. É uma forma de acentuar a importância da manutenção e proteção das prerrogativas do advogado, previstas no artigo 7º da Lei número 8.906, de 4/7/1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (EAOAB). “O advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”, diz o artigo 133, da Constituição Federal/88. Entenda-se que prerrogativas não são sinônimos de privilégios concedidos a “deuses” condenados por uma força superior a viverem em meio a reles mortais de inteligência obtusa – embora alguns pensem dessa forma –, mas, sim, garantias necessárias para que o profissional do Direito atue com o máximo de liberdade e independência, sem o risco e a insegurança constantes de, a qualquer momento, sofrer represálias, retaliações, de pessoas que ocupam posições estratégicas nas estruturas dos poderes instituídos.

Nos últimos dias circulou a notícia de que a OAB havia “criminalizado” a violação de sigilo de advogado, o que, num primeiro momento, foi motivo para entoarem discursos inarredáveis em defesa da instituição, bem como tantos outros questionaram tal enunciado, colocando no centro das discussões a legitimidade da OAB para proferir diretrizes assim. Na realidade ocorreu o seguinte: dia 15/6 o Conselho Federal da OAB aprovou uma súmula, segundo a qual “é crime contra as prerrogativas da advocacia a violação ao sigilo telefônico, telemático, eletrônico e de dados do advogado, mesmo que seu cliente seja alvo de interceptação de comunicações”. Cabem algumas considerações.

A CF diz ser “inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal” (artigo 5º, XII). E, realmente, a OAB não possui competência legislativa que a torne legitimada para inovar o Direito Positivo (escrito), em particular quando se trata de matéria Penal, segundo o enunciado acima transcrito, de vez que compete privativamente à União (leia-se Poder Legislativo Federal composto por Câmara dos Deputados e Senado) legislar sobre Direito Penal (artigo 22, I, CF/88). Nesse sentido, de fato, seria um absurdo sustentar a ideia de que a Ordem, por meio de uma “súmula”, tenha criminalizado alguma conduta, posto que o papel de definir infrações penais e cominar as respectivas penas é uma atribuição incumbida ao Legislativo, face o princípio da legalidade, segundo o qual apenas lei em sentido estrito (ordinária ou complementar) pode inovar o Direito ao dispor sobre matéria Penal incriminadora inédita e prejudicial ao réu. Assim, se analisado de forma isolada e superficial, o texto construído pelo Conselho da OAB, insista-se, na toada do raciocínio de natureza criminal e em razão da legalidade tremendamente restrita, é pura e simplesmente um nada jurídico-penal, um descarado e constrangedor vazio normativo sem qualquer consequência prática perceptível no mundo do Direito.

O Conselho da Ordem, ao editar a referida súmula, tão somente fez menção ao artigo 7º-B, do EAOAB, acrescentado pelo artigo 43 da nova Lei de Abuso de Autoridade (13.869/2019). De acordo com o dispositivo acrescido, “constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do artigo 7º desta Lei”, conduta essa para a qual comina a pena de detenção, de 3 meses a 1 ano, e multa. O citado inciso II do artigo 7º prega que é direito do advogado, entre outros, “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.

A inviolabilidade do advogado, no que diz respeito à sua correspondência escrita, eletrônica, telemática e telefônica, bem como atinente a instrumentos e local de trabalho, já era assegurada pelo EAOAB no artigo 7º, II, cuja redação fora modificada pela Lei 11.767, de  7/8/2008, que teve por finalidade alterar o artigo 7º da Lei 8.906, de 4/7/1994, para dispor sobre o direito à inviolabilidade do local e instrumentos de trabalho do advogado, bem como de sua correspondência. E, por fim, somente a partir de 3/1/2020, data em que entrou em vigor a nova Lei de Abuso de Autoridade, a violação dessa prerrogativa se tornou passível de punição, configurando, portanto, crime, consoante manifestação do Legislativo.

A nosso ver, assegurada a máxima vênia àqueles que, por desconhecimento, sustentavam diferente versão, a recente súmula é mais uma manifestação institucional realizada pela OAB com o intuito de reafirmar aos detratores das prerrogativas o fato, agora penalmente prescrito em lei formal, que não devem permanecer impunes os responsáveis pelas condutas afrontosas aos direitos do advogado previstos nos incisos II (esmiuçado acima), III, IV e V, que são, respectivamente:

III – Comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis;

IV – Ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB e;

V – Não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, a não ser em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, e, na sua falta, em prisão domiciliar.

O dispositivo acrescido ao EAOAB pela lei de abuso “protege as atividades lícitas do exercício da advocacia. Por muitas vezes, os agentes públicos utilizam o poderio do Estado e violam as prerrogativas dos advogados, sem justa causa. As prerrogativas aqui especificadas – apenas os incisos II a V – não demandam interpretação e são muito claras: ou se respeita esses direitos ou praticarão crime de abuso de autoridade. Caso exista justa causa para essa violação, faltará o dolo específico e não responderá o agente público pelo abuso” (SILVA; MARQUES, 2019).

O que os autores pretendem transmitir é a mensagem de que ainda há patente lacuna normativa que, infelizmente, permite que os violadores das supracitadas prerrogativas permaneçam acobertados pela impunidade, pois, a própria Lei 13.869/2019 exige a presença de um dolo específico para que de fato haja a perfeita configuração do crime de abuso de autoridade, na medida em que “as condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal” (artigo 1º, § 1º).

A OAB pretendeu elucidar à sociedade e às instituições que, ao menos parcialmente, a criminalização da violação de (algumas das) prerrogativas do advogado já é uma realidade, e, em tese, almeja a punição daqueles que não conseguem enxergar a grandeza desse ideal e nem perceber que, sem liberdade e independência, a advocacia se torna incapaz de concretizar sua missão e de vivificar a justiça na defesa de direitos; embora, por outro lado, deva-se também reconhecer que a conquista se revela desfalcada, pois, na prática, seja diante da discrição cínica ou da afronta despudorada, será muito difícil comprovar efetivamente a presença dos elementos subjetivos do injusto penal (prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a terceiro, o capricho e a satisfação pessoal – motivadores do ato de abuso). É tarefa árdua escalar os desnivelados e sinuosos degraus da Justiça e, ao mesmo tempo, ter de suportar o peso dos grilhões.

 

José Bruno Martins Leão. Graduado em Direito e Filosofia. Advogado especialista em Análise Criminal, Direito Penal e Processual Penal, Docência Jurídica e Gestão em Segurança Pública.

Este artigo está publicado no jornal impresso de julho de 2020, página 9.

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