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Jornal Caderno Jurídico

Direito Penal e Processual Penal

O "informante do bem"

29/6/2020 às 19h48 | Atualizado em 29/6/2020 às 19h52 - José Bruno
Divulgação José Bruno “Neste cenário de pandemia onde são empregadas maciças dispensas de licitação e tantos outros atos de legitimidade questionável, essas disposições legais são valiosos instrumentos para a preservação do patrimônio público”, ressalta José Bruno

O Estado é detentor exclusivo do direito de punir (“ius puniendi”). Desse modo, para concretizar a repressão à criminalidade organizada, lança mão de um robusto arcabouço de inteligência à disposição das forças oficiais de segurança na busca contínua pela elucidação de infrações penais e suas respectivas autorias; e, após o indispensável transcorrer do devido processo legal, aplica a pena adequada aos transgressores da ordem jurídica incriminadora. Todavia, ao menos no percurso investigatório, não raro, esse Estado, não obstante poderoso, “admite” que de fato necessita do auxílio de terceiros estranhos ao seu quadro funcional, sejam integrantes de grupos criminosos em atividade, sejam desertores dessas mesmas organizações, ou até mesmo qualquer pessoa do povo que possa de alguma maneira contribuir em situações especiais, como, por exemplo, por meio da denúncia anônima/apócrifa (“delatio criminis” inqualificada).

A título de exemplo, referida sistemática de investigação ganhou notoriedade com a deflagração da Operação Lava Jato e, com ela, a constante utilização do instituto jurídico denominado Colaboração Premiada, que nada mais é que um meio de obtenção de provas, passível de ser usado em qualquer fase da persecução penal, conforme o previsto no artigo 3º, I, da Lei das Organizações Criminosas (Lei número 12.850/2013). E, em se tratando de Administração Pública, a presença de um terceiro (informante) também é peça fundamental na descoberta dos desvios de conduta praticados em detrimento do interesse público e ao arrepio da lei, haja vista a relevância do bem jurídico tutelado e a crescente orquestração criminosa evidenciada no cerne da máquina estatal, pois, embora a “res” (coisa) conserve a sua natureza pública, ou seja, de titularidade da coletividade, de forma não tão esporádica é confundida como extensão do patrimônio privado de gestores delinquentes e seus asseclas adestrados, valendo-se, por sinal, de artifícios garantidores de impunidade camuflada.

Nesse ínterim, a Lei número 13.608, de 10 de janeiro de 2018, consolidou importante contribuição com vistas à eficiência no sistema de obtenção de informações acerca da prática de infrações penais ao dispor sobre o serviço telefônico de recebimento de denúncias e, ainda, sobre recompensa por informações que auxiliem nas investigações policiais, incentivando a colaboração da população e assegurando-lhe a garantia do anonimato, nos estritos termos do que nela fora regulamentado (artigo 1º, II). Segundo a citada lei, “os Estados são autorizados a estabelecer serviço de recepção de denúncias por telefone, preferencialmente gratuito, que também poderá ser mantido por entidade privada sem fins lucrativos, por meio de convênio” (artigo 2º), de modo que “o informante que se identificar terá assegurado, pelo órgão que receber a denúncia, o sigilo dos seus dados” (artigo 3º). Aliás, registre-se que, para tal finalidade, “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no âmbito de suas competências, poderão estabelecer formas de recompensa em troca de informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos” (artigo 4º).

Diante dessa conjuntura, a Lei 13.964/2019 trouxe valiosas inovações à Lei 13.608/2018, em especial no que diz respeito ao estímulo e à proteção jurídica em razão de eventual (e quase certa) perseguição realizada em desfavor do denominado “informante”. A aludida Lei, desse modo, na intenção de tutelar o interesse coletivo em sede de Administração Pública em sentido amplo, acrescentou o artigo 4º-A, que assevera os seguintes termos em seu “caput”: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e suas autarquias e fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, manterão unidade de ouvidoria ou correição, para assegurar a qualquer pessoa o direito de relatar informações sobre crimes contra a Administração Pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público”. Em seu parágrafo único preleciona acertadamente que, “Considerado razoável o relato pela unidade de ouvidoria ou correição e procedido o encaminhamento para apuração, ao informante será assegurada proteção integral contra retaliações e estará isento de responsabilização civil ou penal em relação ao relato, salvo se tiver apresentado, de modo consciente, informações ou provas falsas”.

Frise-se que, inconteste, geralmente os crimes contra a Administração Pública e toda sorte de ilícitos penais e desvios administrativos não são denunciados justamente em razão do forte (e justificável) receio de futuras perseguições, retaliações em qualquer um dos patamares do trinômio de responsabilidade, a saber, administrativa, civil e penal, deflagradas contra qualquer pessoa que denuncie (informante) eventuais infrações, servidor ou não, o que contribui para que os autores dos citados ilícitos permaneçam cobertos pelo confortável e maldito manto da impunidade. O dispositivo legal, pois, revela-se um avanço vital no combate à impunidade na seara do setor público, visto que a garantia da proteção integral contra retaliações e a isenção de responsabilidade civil ou penal em prol do autor de relatos substanciais e verdadeiros se apresenta como um instrumento íntegro e contundente no que diz respeito às investigações de atos ilegais dessa natureza.

Entenda-se que, segundo o 4º-B, criado pela nova Lei, o informante terá o direito de preservação de sua identidade, a qual apenas será revelada em caso de relevante interesse público ou interesse concreto para a apuração dos fatos; porém, a revelação da identidade somente será efetivada mediante comunicação prévia ao informante e com sua concordância formal (parágrafo único). Assim, essa disposição (resguardo da identidade do informante) pode ser apresentada como uma das exceções à regra da vedação do anonimato (artigo 5º, IV, da Constituição Federal/88), que prega a liberdade de manifestação do pensamento, sendo vedado ao agente, no entanto, valer-se do artifício do anonimato para se livrar de possível responsabilidade civil e/ou penal. Todavia, há de ser considerada também a concepção estampada no artigo 5º, LX, da CF/88, que reza a possibilidade de se restringir a publicidade quando a defesa da intimidade ou o interesse social exigirem. Tal dissonância, por óbvio, há de ser elucidada de acordo com as peculiaridades do caso concreto e no decorrer da construção dos entendimentos jurisprudenciais e da doutrina especializada.

Ainda no contexto de garantias do informante, o artigo 4º-C reza que, além das medidas de proteção previstas na Lei número 9.807, de 13 de julho de 1999, referentes à organização e à manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, também será assegurada ao informante a proteção contra ações ou omissões praticadas em retaliação ao exercício do direito de relatar, tais como demissão arbitrária, alteração injustificada de funções ou atribuições, imposição de sanções, de prejuízos remuneratórios ou materiais de qualquer espécie, retirada de benefícios, diretos ou indiretos, ou de negativa de fornecimento de referências profissionais positivas.

Nessa esteira, a prática de ações ou omissões de retaliação ao informante configura falta disciplinar grave, sujeitando o agente à demissão a bem do serviço público (§ 1º), devendo aquele ser ressarcido em dobro por eventuais danos materiais causados por ações ou omissões praticadas em retaliação, sem prejuízo de danos morais (§ 2º). Ademais, caso a proteção jurídica integral e a garantia de isenção de responsabilidade civil e penal conferidas ao informante não sejam motivos suficientes para sua contribuição na elucidação de crimes praticados no âmbito da Administração Pública, bem como quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público, o § 3º traz à baila relevante motivação pecuniária ao dispor que, “quando as informações disponibilizadas resultarem em recuperação de produto de crime contra a Administração Pública, poderá ser fixada recompensa em favor do informante em até 5% do valor recuperado”.

Do exposto, depreende-se, pois, que o Estado, ente magnânimo e possuidor dos meios formais de controle social, em princípio suficientes para a prevenção e repressão dos comportamentos danosos aos interesses da coletividade, tenciona gradativamente a reconhecer no particular (informante) uma peça relevante a ser utilizada nas investigações de inumeráveis ilícitos perpetrados em prejuízo da Administração Pública, bem como na salvaguarda de outros bens jurídicos de semelhante envergadura, até como uma forma de preservação da própria integridade estatal. Logo, ante as verdadeiras súplicas de uma sociedade exausta com a impunidade, em especial diante deste cenário de pandemia e fragilidade social, no qual são empregadas maciças dispensas de licitação e tantos outros atos administrativos de legitimidade questionável, essas disposições legais são valiosos instrumentos destinados à preservação da incolumidade do patrimônio público, da moralidade administrativa e própria sociedade.

 

José Bruno Martins Leão. Graduado em Direito e Filosofia. Advogado especialista em Análise Criminal, Direito Penal e Processual Penal, Docência Jurídica e Gestão em Segurança Pública.

Artigo publicado no jornal impresso de junho de 2020.

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