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Jornal Caderno Jurídico

Segurança Pública

Balas perdidas: o Estado sempre terá o dever de indenizar as vítimas?

9/11/2019 às 17h59 | Atualizado em 13/11/2019 às 13h32 - José Bruno
Arquivo Pessoal José Bruno “Certos veiculadores de notícias alegam ser um descalabro nenhum policial morrer numa troca de tiros entre mercenários do tráfico. É um jornalismo tacanho, medíocre e descaradamente desonesto”, critica José Bruno.

Atualmente, opinar sobre questões jurídicas aplicadas à Segurança Pública é uma atividade deveras delicada por dois motivos sobressalentes. Primeiro porque, hoje, vive-se num país que perdeu parte do seu poder de império sobre parcela de seu território, que, por sinal, está sob o flagrante domínio de organizações criminosas nacionalmente conhecidas. Segundo por encontrar-se numa época em que determinados veiculadores de notícias, que se arrogam especialistas na temática e paladinos da verdade a serem criticados, alegam ser um descalabro nenhum policial morrer numa troca de tiros deflagrada entre policiais e mercenários do tráfico de drogas em ambientes por esses controlados. E, infelizmente, toda essa problemática mostra-se cada vez mais perecível, enquanto esta for uma realidade covardemente camuflada, e houver quem confira credibilidade a tais pensamentos “refinados” de um jornalismo tacanho, medíocre e descaradamente desonesto.

Sabidamente, a sociedade já não concebe um confronto armado entre policiais e criminosos como um evento excepcional, dado o elevado índice de criminalidade existente no território nacional, sendo que, não raro, em algumas regiões do país, o barulho de disparos de armas de fogo faz parte do quotidiano daquelas pessoas. Mencione-se o Estado do Rio de Janeiro, que, em 2017, chegou a um percentual equivalente a 38,38 homicídios por 100 mil habitantes, totalizando o surreal número de 6.416 mortes. Segundo dados mais atualizados do Atlas da Violência, constante na plataforma do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (informações acessíveis em: http://www.ipea. gov.br/atlasviolencia/dados-series/20 e http://www.ipea.gov. br/atlasviolencia/dados-series/17, respectivamente).

Neste contexto, o caso da menina Agatha apresenta-se como triste episódio, trazendo à tona alguns questionamentos relacionados à eficiência das políticas de Segurança Pública, especialmente, aos efeitos desastrosos proliferados pelo crime organizado sobre os membros de comunidades subjugadas pelos mandatários do poder paralelo; sendo aqueles, muitas vezes, reduzidos, por meio de diária intimidação, à obediência quase servil aos mandos e desmandos dos agentes do tráfico. Diga-se, pois Agatha foi morta na Fazendinha, no Complexo do Alemão, baleada, segundo a polícia, durante um confronto entre a Polícia Militar e alguns marginais que estavam naquela localidade, não se sabendo, ainda, se o projétil que a atingiu de forma letal foi proveniente de alguma arma pertencente a PM ou aos criminosos, o que ainda não foi esclarecido.

De qualquer forma, percebe-se que, até o momento em que este artigo é escrito, que a menina fora mais uma das vítimas da famigerada ocorrência denominada “bala perdida”. Assim, emerge mais uma vez no cenário jurídico a seguinte questão: o Estado pode ser responsabilizado pelas mortes e/ou lesões corporais provocadas pelas “balas perdidas”? Registre-se que a responsabilidade Penal somente recairá sobre pessoas, sejam policiais, sejam criminosos, restando a responsabilidade civil (dever de indenizar, em suma) como o objeto dessa reflexão.

Segundo o magistério de Sergio Cavalieri Filho (2015, p. 330), “[...] A resposta é indiscutivelmente positiva, porque o dano (morte ou ferimento de um transeunte) teve por causa a atividade administrativa. Em que pese o entendimento em contrário, é desnecessário saber se a bala partiu da arma do policial ou do bandido; relevante é o fato de ter o dano decorrido da atuação desastrosa do poder público”. Afirma, ainda, que, se a bala perdida é proveniente de uma troca de tiros entre policiais e bandidos, não resta dúvida de que a ação das forças de segurança de fato contribuiu para a ocorrência do evento, sendo, portanto, indiscutível o dever de indenizar do Estado. Todavia, consigne-se que somente não haverá o dever de indenizar, nos casos de bala perdida mesmo, ou seja, aquele projétil de origem realmente desconhecida, que não se tem a mínima ideia de onde veio, uma vez que não possui qualquer relação comprovada com a atividade policial.

 

Posicionamento do TJ do Rio

Perceba-se o posicionamento adotado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) em alguns de seus julgados. Por exemplo, no acórdão proferido em 4.9.2019, a 10ª Câmara Cível (autos 0283491-88.2015.8.19.0001), por unanimidade, grosso modo, negou-se o  pedido de indenização formulado por uma vítima de “bala perdida” proveniente de um tiroteio realizado durante um confronto entre Policiais Militares e Meliantes no morro do Gambá (Complexo do Lins), sendo o dever de indenizar do Estado afastado, posto que não se comprovou nos autos do processo a negligência dos serviços públicos, nem a autoria do disparo, sendo o recurso, pois, não provido.

Contudo, a parte autora afirma que a ação despropositada dos policiais envolvidos causou a morte de seu filho, cujo óbito teve como “causa mortis” ferimentos causados por projéteis de armas de fogo decorrentes de operação policial empreendida para a repressão ao tráfico de entorpecentes, realizada na comunidade do morro do Gambá, com forte resistência armada pelos meliantes. Segundo os desembargadores, a prova testemunhal confirma a existência do tráfico de drogas na localidade e, não afasta a participação do filho dos autores na atividade ilícita. Por sua vez, a prova documental indica ter sido o filho dos autores atingido por disparo de arma de fogo quando os policiais militares, ao ingressarem na comunidade, revidaram a injusta agressão realizada pelos criminosos. Concluíram, os desembargadores, que a culpa exclusiva da vítima afasta a responsabilidade e o dever do Estado de indenizar.

De todo modo, também é interessante apontar a constatação de caráter político-social a que chegaram os doutos julgadores, no sentido de que “fato notório é a ação das forças policiais para reprimir o tráfico de entorpecentes na cidade do Rio de Janeiro, na tentativa de livrar a população de atividade tão perniciosa que compromete o desenvolvimento sadio de crianças e jovens, ceifando, prematuramente, suas vidas”.

Noutro caso, este apreciado pela 15ª Câmara Cível (autos 0034958-92.2009.8.19.0001), igualmente oriundo do TJRJ, os desembargadores também negaram pedido de indenização em face do Estado do Rio de Janeiro. Entretanto, este fato diferencia-se do anteriormente citado. Neste, não houve confronto armado entre policiais e bandidos na localidade no dia do fato e a vítima foi alvejada enquanto estava dormindo em seu berço. Sua genitora, ao ouvir o choro, dirigiu-se até o quarto e constatou que a criança estava ensanguentada e com um projétil de arma de fogo cravado em seu pescoço. A criança foi socorrida, a “bala perdida” foi retirada e, posteriormente, os peritos foram à residência da vítima e verificaram que havia um furo causado pelo projétil na telha de sua residência. Com isso, o pedido de indenização apresentou como fundamentado a omissão do Estado do Rio de Janeiro em prestar um serviço de Segurança Pública de maneira adequada e eficaz.

O desfecho do processo acima referido foi a não condenação do Estado e a consequente não concessão de uma indenização no valor de R$ 200.000,00, pleiteada a título de dano moral, uma vez que “[...] A situação descrita [...] reporta omissão genérica do Estado, ligada diretamente ao seu dever de manutenção da segurança de toda a população, de modo que caberia ao autor fazer a prova da culpa do réu, que não atua como garantidor universal. Ademais, se inexiste nos autos qualquer prova de que, no dia do evento, tenha havido confronto entre policiais e bandidos na localidade, que pudesse levar à suposição de que o projétil de arma de fogo que atingiu o autor fora disparado por algum policial, nem mesmo o nexo causal entre o dano e a conduta do réu restou comprovada.

 

As conclusões básicas

Em suma, as conclusões básicas que se podem extrair dos casos acima narrados são as seguintes:

1) Nem sempre o Estado, não obstante o dever de prestação de serviços de Segurança Pública, terá o dever de indenizar todos aqueles que eventualmente forem vitimados pelas chamadas “balas perdidas” e;

2) O Estado, como o próprio Tribunal de Justiça expressamente reconheceu, mesmo sendo o detentor do monopólio da Segurança Pública, não é um garantidor universal da segurança, o que significa dizer que as forças de segurança não são onipresentes, oniscientes, muito menos onipotentes, havendo a escancarada impossibilidade física de garantir a segurança individual de todo cidadão brasileiro, o que muito influencia na análise da sua responsabilidade no que diz respeito ao dever de indenizar determinadas pessoas.

Nessa discussão, por fim, não se pode negar que se revela como algo espúrio, e distante da sóbria análise político-jurídica, a prática já conhecida de lançar mão de acontecimentos desta natureza para deflagrar ataques contínuos e desproporcionais à imagem das instituições policiais, colocando em dúvida a reputação e o preparo técnico de todo o seu quadro funcional, politizando tragédias e transformando-as em objetos de propaganda ideológica no sentido de achincalhar o bom trabalho dos agentes das forças de segurança, constituindo verdadeiros tribunais midiáticos de exceção a fim de colocar no banco dos réus tanto os bons como os maus profissionais de segurança, condenando-os à contínua execração pública de baixíssimo nível.

 

José Bruno Martins Leão, graduado em Direito e Filosofia, advogado especialista em Segurança Pública. José Leão foi um dos primeiros estudantes a ter artigo selecionado para o Espaço Acadêmico do Caderno Jurídico. Em 2014 escreveu “Da relativização do direito à imagem”, artigo publicado no jornal impresso de junho daquele ano. “Quando ocorrer colisão entre o direito à imagem e o interesse público, este deverá prevalecer, mesmo sem autorização do titular daquele, uma vez que a imprensa estabelece um relevante serviço à sociedade e à efetivação do processo democrático”, escreveu.

Artigo publicado no Caderno Jurídico impresso de outubro de 2019.

 

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CAVALIERI FILHO, SÉRGIO. Programa de responsabilidade civil. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

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