Direito Penal e Processual Penal
Ampliação da legítima defesa proposta pelo ministro Moro no pacote anticrime
Impossível negar que o Brasil passa por um momento histórico, porém sensível, de transição. Existe uma necessidade inadiável, de reformas estruturais. Assim, a necessidade de inovações legislativas ganha mais relevo e credibilidade perante a sociedade brasileira. Neste contexto entra em cena o anteprojeto de lei popularmente conhecido como “pacote anticrime”, capitaneado pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.
O referido “Pacote Anticrime” apresenta-se como um verdadeiro compilado de alterações normativas pontuais que perpassam por variados diplomas normativos, tais como, o Código Penal (CP); o Código de Processo Penal (CPP); a Lei de Execução Penal (lei número 7.210/1984); a Lei dos Crimes Hediondos (lei 8.072/1990); a Lei das Organizações Criminosas (lei 12.850/2013); o Estatuto do Desarmamento (lei 10.826/2003); a Lei da Improbidade Administrativa (lei 8.429/1992); o Código Eleitoral (lei 4.734/1965); a Lei 11.671/2008, que versa sobre a transferência e inclusão de presos em estabelecimentos penais federais de segurança máxima e outras providências congêneres; a Lei 12.037/2009, que disciplina a identificação criminal do civilmente identificado; a Lei de Interceptação Telefônica (lei 9.296/1996); a Lei de Drogas (lei 11.343/2006); a Lei de Prevenção à Lavagem de Dinheiro (lei 9.613/1998); e a Lei 13.608/2018, que dispõe sobre o serviço telefônico de recebimento de denúncias e sobre recompensa por informações que auxiliem nas investigações policiais.
Tal conjunto de propostas de alterações cirúrgicas na seara criminal revela, em suma, de forma inequívoca, a busca pela consolidação de novos paradigmas no ordenamento jurídico brasileiro, sintetizada, num primeiro momento, pelo implemento de medidas efetivas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa, conforme o preconizado pela redação do seu artigo 1º.
Dada a gama de alterações propostas pelo Ministro Sergio Moro, convém, por ora, restringir a análise à legítima defesa, um dos institutos jurídicos mais importantes da área Criminal, posto que, embora seja de conhecimento cediço pelos operadores do Direito, não raro é mal interpretado pelos cidadãos não atuantes na área jurídica, e, em especial, na órbita Penal.
Numa interpretação sistemática, tendo em vista o diálogo entre os diplomas legais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo III, apregoa que “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Nessa esteira, a Constituição Federal/88 proclama, em seu artigo 5º, caput, em síntese, a inviolabilidade do direito à segurança. Numa visão geral, essa “segurança”, em princípio, deve ser prestada pelo Estado, na condição detentor do monopólio da Segurança Pública, assegurando a incolumidade das pessoas e do patrimônio, ao mesmo tempo em que se apresenta como mantenedor da ordem pública. E, justamente em razão dessas disposições que o Estado, em regra, veda ao particular que se utilize de meios próprios para assegurar sua segurança pessoal (autotutela), na tentativa de desestimular a prática do exercício arbitrário das próprias razões, sob pena de condutas realizadas com esse reprovável intuito se enquadrarem em tipo penal incriminador em voga no Direito brasileiro. Punindo, desta forma, quem, porventura, queira “fazer justiça pelas próprias mãos”, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite (artigo 345 do Código Penal).
Note-se que o mesmo dispositivo legal trouxe a possibilidade de a lei excepcionar a proibição ostentada em seu texto, admitindo que, em situações bastante peculiares, o cidadão possa lançar mão da autotutela. Essa condição permissiva é conhecida como legítima defesa (uma defesa realizada de forma legítima, ou seja, em consonância com o direito vigente). “Trata-se do mais tradicional exemplo de justificação para a prática de fatos típicos. Sendo sempre acolhida, ao longo dos tempos, em inúmeros ordenamentos jurídicos, desde o direito romano, passando pelo direito canônico, até chegar à legislação moderna. Valendo-se da legítima defesa, o indivíduo consegue repelir agressões indevidas a direito seu ou de outrem, substituindo a atuação da sociedade ou do Estado, que não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo, através dos seus agentes. A ordem jurídica precisa ser mantida, cabendo ao particular assegurá-la de modo eficiente e dinâmico. (NUCCI, 2017)
Nota-se que, pela redação do artigo 23 do Código Penal (CP), que não há crime quando o agente pratica o fato em legítima defesa, visto tratar-se de causa excludente de ilicitude, uma hipótese excepcional de autotutela permitida pelo ordenamento jurídico; ao passo que o artigo 25 do mesmo diploma legal a define, basicamente, como a conduta de usar moderadamente dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de outrem.
Nesse sentido, o projeto de lei anticrime oriundo do Ministério da Justiça e Segurança Pública propõe mudanças em ambos os dispositivos legais acima citados. Percebe-se que as alterações apresentadas se destinam basicamente a duas categorias distintas de pessoas: de um lado, os cidadãos “comuns”, ou seja, a sociedade em geral, e d’outro, os agentes policiais ou de segurança. Os primeiros são desconhecedores de métodos e técnicas de segurança pessoal, facilmente abaláveis em situação de agressão injusta, atual ou iminente, deflagrada por um terceiro em detrimento de sua integridade física ou moral, uma vez que a reação geralmente é composta por atitudes carregadas de emoção e, perigosamente desorientada, em virtude de justificável inexperiência. Os segundos, por sua vez, são treinados para reagirem de modo completamente diverso, sendo capazes de, com a técnica e a destreza necessárias, impedir que um mal maior possa ser concretizado.
Registre-se, de antemão, que as alterações propostas, salvo melhor juízo, atendem às condições de ambos os sujeitos, surgindo como um vislumbre de empatia e compreensão por parte do Estado em relação às características pessoais daqueles acima retratados, pois o projeto de lei anticrime, não obstante mantenha a figura criticável do excesso culposo, no que concerne às pessoas que desconhecem algum estratagema para se defender/reagir usando moderadamente os meios necessários e, por conseguinte, “exageram” em sua atitude defensiva/reativa – principalmente ante a vagueza e a imprecisão dessa prescrição legal –, no pretenso § 2º do artigo 23 do CP, consigna o seguinte: “o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.”
Isso é, em certa medida, o Estado sendo piedoso com quem não sabe se defender de uma agressão injusta, fazendo-o de modo excessivo por acreditar que a legislação chancela todas as proporções de comportamentos defensivos, visto que, com a devida vênia, na prática, em algumas situações, torna-se muito difícil aferir com exatidão a partir de qual instante a utilização dos aludidos meios necessários passou a ser imoderada aos olhos do fiscal da ordem jurídica; “detalhe” esse que pode ser a diferença entre uma denúncia promovida pelo órgão do Ministério Público e o início de um processo penal, e a promoção de arquivamento de um inquérito policial em que se conclui pela presença de legítima defesa escancarada.
Valendo-se da máxima vênia, porém, há de se questionar:
a) Considerando o excesso culposo como o resultado de má avaliação das circunstâncias, acarretando num nítido “erro de cálculo” quanto à gravidade do perigo gerado pela agressão injusta, atual ou iminente, ou quanto ao modus da respectiva reação, não seria tal excesso uma decorrência natural do medo (escusável), surpresa ou violenta emoção geralmente presentes na pessoa injustamente agredida?;
b) Reconhecida a relação causal da enunciação anterior, a nova previsão normativa, em certa medida, assegurará que o excesso culposo comumente concederá ao agente a inquestionável benesse, haja vista a existência uma faculdade à disposição do julgador, posto que esse poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la? De todo modo, a influência recíproca entre tais dispositivos somente será elucidada pela competente doutrina e pela jurisprudência, mediante a justa e ponderada aplicação do direito aos futuros casos concretos.
Ademais, o projeto de lei anticrime, se aprovado, acrescerá ao artigo 25 do CP um parágrafo único com a seguinte redação:
“Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa:
I – O agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem;
II – O agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”.
Em apertada síntese, conclui-se que tal proposta normativa concede aos agentes policiais maior segurança jurídica e, ao menos teoricamente, impede que tais agentes sejam injustamente punidos pelas condutas contundentes exigidas no combate ao crime, pois as circunstâncias da legítima defesa, que respalda o cumprimento do dever estarão minimamente expressas em texto legal, não ficando integralmente relegada à subjetividade da interpretação dos fatos efetuada pelo titular da Ação Penal Pública.
José Bruno Martins Leão, graduado em Direito e Filosofia, advogado especialista em Segurança Pública. José Leão foi um dos primeiros estudantes a ter artigo selecionado para o Espaço Acadêmico do Caderno Jurídico. Em 2014 escreveu “Da relativização do direito à imagem”, artigo publicado no jornal impresso de junho daquele ano. “Quando ocorrer colisão entre o direito à imagem e o interesse público, este deverá prevalecer, mesmo sem autorização do titular daquele, uma vez que a imprensa estabelece um relevante serviço à sociedade e à efetivação do processo democrático”, escreveu.
Artigo está publicado no jornal impresso de setembro de 2019.