Direito Penal e Processual Penal
O crime de desobediência na Lei Maria da Penha
Após doze anos em que a Lei Maria da Penha (11.340/2006) se encontra em vigor é nítida a necessidade de novas medidas para o combate à violência de gênero. Segundo o Mapa da Violência 2015¹, o crescimento de homicídios de mulheres entre 1980 e 2006 (anterior à Lei) foi de 7,6% ao ano (2,5%, se ponderado segundo a população feminina); entre 2006 e 2013, o crescimento diminuiu para 2,6% ao ano (taxa de 1,7%). Mas o fato é que tais homicídios continuam a crescer, ainda que em ritmo menor do que no período anterior à aprovação da Lei.
No mês de junho de 2018, a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Paraná (Cevid) apresentava, ativas, em seu sistema, cerca de 22 mil medidas protetivas em favor de mulheres. Apesar desses números, sondagem realizada pelo ICJBrasil (Índice de Confiança na Justiça – FGV Direito SP) e divulgada em março de 2018 apontou que, em um universo de 1.650 mulheres entrevistadas, 80% entenderam que a lei "é pouco ou nada eficaz para proteger as mulheres da violência"².
Para os profissionais que atuam diariamente com situações de violência doméstica contra a mulher, tal índice é compreensível. Não são raras as vezes em que, mesmo após determinação judicial de afastamento do lar e da vítima, o agressor descumpre as medidas e volta a importuná-la, sem qualquer respeito à decisão de afastamento. Em 2017, no município de Curitiba, a Patrulha Maria da Penha atendeu 149 situações de flagrante por descumprimento de medidas protetivas impostas em razão de violência doméstica contra a mulher. Considerando que foram realizadas 1.591 visitas em 2017, o percentual de descumprimento se aproxima dos 10%. Contudo, sabe-se que tal número é bem maior, já que é rara uma situação de flagrante por descumprimento de medida protetiva, e há a possibilidade de tais ocorrências serem atendidas por outros setores da polícia. Em boa parte dos casos, a vítima, desiludida, nem sequer procura novamente a Justiça. Quando recorre, pouco havia, antes da alteração da Lei, a ser feito, já que a prisão preventiva para garantir o cumprimento de medida protetiva de urgência (artigo 213, III, CPP) somente pode ser aplicada se o descumprimento configurar novo crime (e nem sempre a prática da violência doméstica se exterioriza por meio de crime – a perseguição persistente, por exemplo, conhecida por stalking, é uma forma comum de violência doméstica, mas não é crime no Brasil). E a imposição de multa pelo descumprimento é, em geral, inócua. Quanto ao crime de desobediência previsto o artigo 330 do Código Penal, o entendimento prevalente, firmado pelo STJ, é no sentido de ser inaplicável ao caso, já que é cabível a prisão preventiva ou a imposição de multas, por exemplo³.
Diante da falta de uma resposta mais rígida à situação, em 7 de abril de 2018, foi publicada a Lei 13.641, que criminaliza o descumprimento das medidas protetivas de urgência. Assim, por exemplo, aquele que importunar ou agredir uma mulher de seu convívio doméstico ou com quem tenha relação íntima de afeto, estando proibido, por decisão judicial, de se aproximar da vítima ou com ela manter contato por qualquer meio, poderá ser preso e denunciado e receber uma pena de detenção de três meses a dois anos. O crime se configura com o descumprimento de qualquer medida protetiva aplicada pelo juiz, entre aquelas previstas no artigo 22 da Lei 11.340/2006. Em caso de flagrante, apenas o juiz poderá conceder ao acusado liberdade provisória, já que o artigo 24-A, § 2º, da Lei 11.340/2006 proíbe expressamente a concessão de fiança pela autoridade policial (e nesse momento também será analisado o cabimento de prisão preventiva). Além disso, por estar inserido na própria Lei Maria da Penha, não é possível a substituição da pena por cestas básicas, e são inaplicáveis os benefícios da Lei 9.099/1995 (rito sumaríssimo, transação penal, suspensão condicional do processo).
Esse passa a ser o único crime tipificado dentro da própria Lei Maria da Penha – já que a prática da violência doméstica contra a mulher pode se manifestar por meio das mais diversas condutas (inclusive não criminosas) ou crimes (desde uma simples perturbação ao sossego até um feminicídio). A Lei visa a tutelar, de maneira mediata, a integridade da mulher, embora o bem jurídico protegido diretamente seja a administração da Justiça; por tal motivo, a competência para julgá-lo deverá ser do Juizado de Violência Contra a Mulher ou da vara que tenha competência na matéria. Se a conduta que deu ensejo à medida protetiva consubstanciar-se em crime e ainda não tiver sido denunciada, a denúncia poderá ser feita em conjunto com o crime do artigo 24-A.
Por fim, importa salientar que a inserção de um crime dentro da Lei Maria da Penha não a torna uma lei de natureza penal. Trata-se de uma lei de natureza mista, um microssistema que, ao destacar expressamente a condição de vulnerabilidade da mulher frente ao homem, prevê instrumentos para sua proteção e impõe a necessidade de adoção de ações positivas e harmônicas por todos os Poderes. Tem por objetivo a prevenção e o combate à violência doméstica e a própria transformação da cultura machista. Portanto, a tipificação do crime de desobediência por descumprimento de medidas protetivas acrescenta efetividade ao combate à violência doméstica, mas será inócua se os demais destinatários da Lei (Município, Estado, União, Poder Judiciário e Ministério Público) não atenderem de maneira completa aos seus comandos integrais.
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1. Mapa da Violência 2015. Disponível em: https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf . Acessado em 31/05/2018.
2. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/80-acreditam-que-lei-maria-da-penha-e-pouco-eficaz-diz-fgv-direito/. Acessado em 31/05/2018.
3. A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça está pacificada no sentido de que o descumprimento de medidas protetivas estabelecidas na Lei Maria da Penha não caracteriza a prática do delito previsto no art. 330 do Código Penal, em atenção ao princípio da ultima ratio, tendo em vista a existência de cominação específica nas hipóteses em que a conduta for praticada no âmbito doméstico e familiar, nos termos do art. 313, III, do Código de Processo Penal. Precedentes. (HC 406.951/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 26/09/2017, DJe 06/10/2017)
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Mariana Dias Mariano. Promotora de Justiça, integrante do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos e Coordenadora do Núcleo de Promoção da Igualdade de Gênero (Nupige) do Ministério Público do Estado do Paraná.