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Jornal Caderno Jurídico

ENTREVISTAS

O marco jurídico das organizações religiosas

29/7/2019 às 17h56 | Atualizado em 29/7/2019 às 17h58 - Hugo Cysneiros
Mídia e Conexão Hugo Cysneiros “Buscamos promover um debate franco sobre um ramo da Ciência Jurídica que tem sido inexplicável e historicamente negligenciado pela academia brasileira: o Direito Eclesiástico”, afirma Hugo Cysneiros.

Resultado da necessidade de bibliografia sobre o Direito Eclesiástico, o livro “O Marco Jurídico das Organizações Religiosas”, organizado pelo advogado Hugo José Sarubbi Cysneiros Oliveira, em coautoria com colegas juristas do escritório Sarubbi Cysneiros Advogados Associados, traz um amplo debate sobre o ramo pouco explorado. Voltado à comunidade jurídica e para todos aqueles que querem entender mais conceitos como laicidade, foi pensado para ser objeto de estudo daqueles que atuam nas organizações religiosas das mais variadas confissões. A obra já está disponível e pode ser adquirida por meio da editora Edições CNBB.

Hugo José Sarubbi Cysneiros é sócio fundador do Sarubbi Cysneiros Advogados Associados. Advogado militante desde o ano de 2000, graduado pela UFPE, pós-graduado no curso de MBA Executivo pelo IBMEC, atendeu ao programa de doutorado da Universidade de Salamanca, concluiu o Curso de Formação em Inteligência pela Escola da Agência Brasileira de Inteligência. Assessor jurídico da Nunciatura Apostólica do Brasil, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, da Conferência dos Religiosos do Brasil – CRB, da Associação Nacional de Educação Católica do Brasil – ANEC, de dezenas de Dioceses, institutos religiosos e entidades sem finalidade de lucro. Nesta entrevista, feita especialmente para o Caderno Jurídico, o doutor Hugo Cysneiros fala um pouco sobre algumas das questões abordadas no livro.

 

Doutor, o que é um Estado laico?

Falar em Estado laico significa entender o ente estatal como expressão soberana do poder emanado e delegado pelo povo e não como uma expressão divina, como uma manifestação de vontade de índole transcendental. Entretanto, significa também compreender que nesse mesmo Estado às organizações religiosas é dado o direito de cumprir um importante papel perante a sociedade civil. Naturalmente, as Igrejas de uma maneira geral atendem a um propósito de viés metafísico, sobrenatural, que tem a ver com a fé das pessoas, mas no nosso caso de um Estado republicano, democrático, onde o princípio da liberdade religiosa é respeitado, as organizações religiosas podem e devem interagir com as autoridades constituídas quando o interesse público se faz presente. Isso inclusive está previsto expressamente no artigo 19 da nossa Constituição. Significa, basicamente, um Estado onde a manifestação religiosa, a liberdade de crença, é protegida. O Estado laico não é um Estado clerical, onde a religião é oficial, mas também não é uma organização antirreligiosa. Ele permite o direito de crer e também o direito de não crer, de forma que as coisas não venham a se misturar. As organizações religiosas podem cumprir determinados papéis que vão além da presença nas suas próprias instalações, dentro do seu próprio templo. Por exemplo, elas participam de políticas públicas, na atuação junto com outras organizações da sociedade civil, na área da educação, na área da saúde, mas como promotora, sem nenhum tipo de preconceito, sem nenhum tipo de predileção por qualquer pessoa que venha a ser beneficiada por esse tipo de serviço. A organização religiosa pode atender a esse papel múltiplo. Laicidade não se confunde com laicismo que é justamente o extremo oposto. Aquele estado que afasta a religião, que proíbe a manifestação religiosa, que entende a religião como uma espécie de reserva concorrente de poder que tem que ser eliminada, mitigada, não está identificado com a melhor expressão da organização política moderna.

 

No Brasil, a laicidade do Estado é respeitada?

Com o advento da República, mais especificamente com a edição do Decreto 119-A de 1890, o Brasil adota a laicidade estatal e, desde então, a liberdade de religião e de crença são protegidas constitucionalmente. Hoje, o país vive uma era de plena liberdade religiosa. A Constituição Federal dá a essas organizações determinadas prerrogativas e também confere obrigações, incluindo a seara tributaria. Mas pode-se dizer que o Brasil é um bom exemplo de Estado laico, onde as igrejas cumprem seu papel, sem que isso se confunda, necessariamente, com o funcionamento do poder público. Lembrar que as prerrogativas de índole tributária postas pela carta constitucional em favor dos entes religiosos correspondem justamente a uma proteção que se dá à liberdade de crença. A experiência mostra que, não raro, Estados totalitários tentaram mitigar liberdades individuais por meio da tributação. Não por coincidência, a liberdade partidária, sindical e de crença gozam de tal proteção.

 

Se o estado é laico, por que temos feriados religiosos? Eles deveriam ser abolidos?

As fontes de Direito são muitas. Você tem a Lei e a Jurisprudência, por exemplo. Costume também é fonte de Direito e o fato concreto é que nós pertencemos a uma sociedade que tem uma fortíssima tradição judaica e cristã, claramente um contexto e em um seio social muito identificado com esse tipo de cultura e civilização. No caso do Brasil, por circunstâncias históricas que todos nós conhecemos, em razão da colonização que vivemos, praticamente quase a totalidade do processo de consolidação do Estado se deu sob fortíssima influência da tradição religiosa Católica Apostólica Romana. Esse é um tema curioso, porque quando a gente fala em feriado religioso, católico, precisa lembrar que diversas das nossas datas que não são necessariamente feriados também têm esse tipo de gênese. O dia das mães é no mês de maio, um mês mariano, dedicado a Maria. O carnaval é um feriado, uma festividade, que tem total associação com a questão religiosa, inclusive judaica. Fazer esse tipo de separação é muito complicado porque, no fundo, mais do que uma questão religiosa, a gente tem elementos culturais muito fortes no presente. Veja no Natal, por exemplo, independentemente de hoje ter se perdido muito da referência religiosa da data, alguém imagina nosso dia a dia, nosso comportamento de ver o final do mês de dezembro como o fim de um ciclo, algo dissociado do período natalino? É difícil. Tudo termina se misturando de uma maneira muito forte. Não acho que seja fruto de nenhum tipo de privilégio. Em alguns locais você tem o dia do evangélico, alguns dos santos católicos também são divindades para religiões de matriz afro, sendo igualmente motivo de celebração em feriados. Temos que ver isso com muita normalidade, ao contrário do que alegam alguns, acontece no mundo todo, não me parece um grande problema. Tem a ver com essa grande colcha de retalhos que é qualquer sociedade.

 

Assim como os feriados, outra questão presente nas discussões sobre a laicidade do Estado se refere aos símbolos católicos em repartições públicas. Isso fere a laicidade do Estado?

Mais uma vez, há aí uma questão cultural muito forte, inclusive esse tema já foi objeto de discussão no Judiciário e no Conselho Nacional de Justiça, algumas vezes. O Conselho diz basicamente o seguinte: é proibida a presença de um símbolo religioso em uma repartição pública? De forma alguma. Mas é obrigatório que esteja lá? Também não. O que vai decidir a controvérsia é justamente a questão do hábito, do costume. Um exemplo claro: no plenário do Supremo Tribunal Federal do Brasil, há um painel de mármore, com diversos nichos idênticos, sendo um maior de todos e é justamente ali que existe um crucifixo. Quando você pesquisa, descobre que o painel é do artista plástico Athos Bulcão, que indica que todos são iguais perante a lei, mas existe algo que é maior do que todos, uma força ‘maior’. Aquele crucifixo, feito de Pau Brasil, é de Alfredo Ceschiatti, autor de diversas esculturas aqui em Brasília. Tem todo um significado por trás. Em diversas casas legislativas e cortes ao redor do mundo símbolos religiosos estão presentes. O que não pode acontecer – e de fato não acontece – é ter resultados de julgamentos induzidos pela presença daquele símbolo. Para quem não crê, aquele item é uma escultura e, para quem crê, aquilo tem um significado transcendente. Há uma diferença entre o significado e o significante, entre a coisa propriamente dita e aquilo que ela representa. Quando se lembra que a imagem da Justiça é uma Deusa, Thêmis, é possível dizer que a presença de tal escultura (também de autoria do Alfredo Ceschiatti), em plena Praça dos Três Poderes, agride o princípio da laicidade? A resposta é não. Evidente que ela é uma divindade, mas a escultura para a grande maioria se limita a simbolizar a Justiça.

 

A que tipo de imunidade, no que diz respeito a impostos e taxas, as associações e entidades religiosas têm direito?

A Constituição Federal, no seu artigo 150, diz que templos de qualquer culto – que a gente entende como sinônimo de organizações religiosas – são imunes aos impostos. É importante salientar isso. Entre isenção e imunidade há uma diferença grande. As organizações religiosas são imunes aos impostos que incidem sobre a sua renda, patrimônio e serviço. Ao falar em imunidade referente a impostos, nós não estamos falando de taxas, contribuições sociais, estamos falando, basicamente, de impostos sobre esses três elementos que cito. A legislação prevê para outras figuras como partidos políticos, sindicatos, associações civis e organizações sem finalidade de lucro, que se dedicam à saúde, educação, assistência social, um tratamento jurídico bem semelhante. De uma maneira geral, essa é a grande prerrogativa tributária das organizações religiosas. A imunidade não é uma renúncia fiscal, não é um perdão. É a plena inexistência da relação jurídico-tributária. O fenômeno tributário ali simplesmente inexiste. Uma outra importante hipótese de imunidade conferida a organizações sem finalidade de lucro é a do parágrafo sétimo do artigo 195 da Constituição Federal. Esse caso contempla as contribuições que financiam a seguridade social. Há hoje uma intensa discussão no STF sobre a constitucionalidade das normas que fixam as contrapartidas necessárias ao gozo dessa possibilidade imunitória. A isenção é uma outra coisa, um outro instituto, que na prática depende de normas locais, municipais, estaduais e distritais, por exemplo. Podem atingir impostos e taxas, inclusive. Aí, sim, temos o Estado arrecadador que por razões várias abrem mão do direito de tributar em determinados casos.

 

Como nasce uma organização religiosa? Quais são os documentos necessários?

O Brasil vive um cenário de multiplicação de algumas confissões, muitas ligadas ao movimento neopentecostal. Tecnicamente, a Constituição de uma organização religiosa do registro do respectivo estatuto no competente cartório de registro de pessoas jurídicas. A verdade é que há uma multiplicidade de denominações e caracterizações daquilo que poderia ser denominado “igreja”. Algumas pessoas consideram determinadas entidades não exatamente igrejas e sim seitas. É muito difícil fazer alguma espécie de controle até mesmo conceitual disso. O próprio Supremo Tribunal Federal já se pronunciou em alguns casos em que disse o seguinte: não cabe ao Estado Juiz dizer o que é religião e o que não é. A Suprema Corte admite que não tem legitimidade para entrar no mérito do sentimento de alguém para julgar se um fato concreto da vida é ou não é uma manifestação de transcendência, se aquilo é ou não digno de razão de sentimento de fé. Quando o Supremo estabelece esse tipo de entendimento, o que está dizendo é o seguinte: é religião aquilo que a pessoa diz que é. A pessoa resolve se organizar com outra, dizer ‘agora estamos fundando uma nova igreja’ e o Estado brasileiro em razão do princípio da liberdade religiosa não tem como desmerecer ou duvidar da legitimidade disso. É fato que há severas críticas e desconfianças no sentido de apontar um abuso de direito por algumas pessoas, que se aproveitariam desse horizonte tão largo para se beneficiar daquilo que seriam as prerrogativas tributárias das organizações religiosas. Sempre que escuto esse tipo de crítica, digo: cabe ao Estado fiscalizar e investigar casos concretos, a fim de ver se ali existe ou não um abuso de direito, um desvio de finalidade. Mas a solução não pode ser a contrária: não há que se falar em controle prévio na constituição das organizações religiosas.

 

Quais são as diferenças entre as organizações religiosas e as organizações da sociedade civil?

Nós temos no Código Civil um parágrafo muito importante, especificamente no artigo 44, que trata da liberdade de organização, estruturação e funcionamento das organizações religiosas. Isso justamente para poder diferenciar essas entidades, por exemplo, de associações civis e das fundações privadas. São coisas absolutamente diferentes. Associação civil é um conjunto de pessoas físicas ou jurídicas que se dedicam a um determinado objetivo social associativo. Há as que se prestam à defesa do meio ambiente, da cultura, da educação, lazer, saúde. Na organização religiosa, o que move os membros (e não associados) não é o propósito associativo de finalidade não econômica e sim uma busca, um chamado, um carisma, que é uma palavra muito utilizada dentro da Igreja Católica. O carisma por determinada missão. O religioso sente-se impelido a, sob o manto de uma missão apostólica, defender os pobres, os migrantes, os doentes ou simplesmente se manter em estado permanente de oração. Por tal razão é que se percebem tantas organizações religiosas com características tão distintas.

 

Do ponto de vista jurídico, o que pode ser enquadrado como intolerância religiosa? O que o Brasil tem feito para impedir que isso aconteça?

A intolerância religiosa está presente, sim, principalmente em relação às religiões afro. Isso é fruto, basicamente, de falta de educação, no sentido mais amplo da expressão, preconceito propriamente dito e, em determinado grau, fruto do fundamentalismo religioso. Tudo isso tem a gênese mesmo na falta de formação e informação, de não entender, de não enxergar em determinados atos uma manifestação religiosa. Ouvimos falar em determinadas iniciativas de prevenção, mas certamente não são suficientes. Ainda que em números absolutos não tenhamos uma onda gigantesca de casos, que se multiplicam em todas as esquinas, eu acho que os números já são alarmantes. No Distrito Federal, nos últimos três anos, posso me lembrar, rapidamente, de quatro ou cinco episódios em que locais de celebração de pessoas que professam especialmente liturgias de confissão de matriz afro foram atacados, incendiados e depredados. No Rio de Janeiro a mesma coisa. Em geral, as seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil têm as suas comissões de liberdade religiosa, alguns governos estaduais também têm secretarias que combatem esse tipo de comportamento, mas, infelizmente, não é o suficiente. Até porque, geralmente, são medidas isoladas tomadas por indivíduos sozinhos, não por organizações criminosas. Movidas por seu fundamentalismo, encontram esse tipo de válvula de escape por um sentimento terrível, criminoso. Nós temos um crime previsto na legislação, de vilipêndio. A pena diria que é simbólica, porque, no final das contas, não se traduz em prisão, nem em nada significativo. Isso é sempre objeto de algum tipo de transação penal. Não é também desejo de ninguém sair prendendo as pessoas, então, por isso que a solução está na educação definitivamente.

 

Como o meio jurídico lida com as crenças religiosas?

Essas ações são sempre interessantes e são discussões riquíssimas, porque têm a ver com o famoso conflito horizontal de princípios e liberdades individuais e, às vezes, de liberdades sociais ou direitos coletivos. Tem uma recente discussão no Supremo Tribunal Federal, que foi encerrada faz cerca de três meses, que trata do sacrifício de animais para rituais religiosos. E aí o que é que vale? A Justiça tem atuado de uma maneira muito favorável à questão da liberdade religiosa. Nesse caso de sacrifício de animais, por exemplo, o Supremo entendeu como possível. Porque você vai colocar ali valores jurídicos que aparentemente se chocam, mas no final das contas precisam, de alguma maneira, conviver. No caso da transfusão de sangue (testemunhas de Jeová não permitem o procedimento), já houve decisões judiciais de diversas formas. O STF também está debatendo isso. Eu tenho a ciência de casos em que o juiz impôs o procedimento e casos também em que o Judiciário entendeu que não caberia a ele forçar alguém a ter um determinado comportamento, mesmo em favor da sua própria saúde. O que torna o caso complicado é quando há, por exemplo, o interesse de um incapaz, menor de idade, quando você tem por um lado a tutela dos pais e, por outro lado, você vê o Estado que tem que proteger a vida, ou o Ministério Público que pode, de alguma maneira, interferir naquela relação quando entende que o interesse do menor não está sendo devidamente preservado. E aí cabe ao Judiciário analisar, caso a caso, qual a melhor solução. Não é uma solução fácil, não são discussões simples, triviais, elas geralmente repercutem bastante.

 

Da Redação
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