ENTREVISTAS
A sindicabilidade do ato administrativo em concurso público
Você sabia que o candidato está amparado pelo Judiciário quando há erros cometidos pelas bancas examinadoras de concursos públicos? Neste aspecto é extremamente importante a exata atuação do operador do Direito para comprovar a ilegalidade, seja por erro grosseiro em questão objetiva, ou exigência de títulos não amparados pelo edital. A informação é do procurador federal Felipe Cesar Michna, da Advocacia-Geral da União. São vários os problemas encontrados pelos candidatos. Vão desde idade máxima para assumir cargos intelectuais, exames de saúde invasivos e até provas orais analisadas desproporcionalmente. Em entrevista ao Caderno Jurídico o procurador explica o que é sindicabilidade do ato administrativo. Felipe Michna é especialista em Direito Público e pós-graduado em Direito e Processo Tributário.
O que pode ser entendido como sindicabilidade do ato administrativo?
É um controle do ato administrativo, exercido pela própria Administração ou pelo Judiciário. Configura-se como uma forma de conter abusos e deve ser interpretada sob o enfoque de uma nova sistemática do Direito Administrativo.
No que se refere ao concurso público, como a sindicabilidade é analisada?
Este assunto tomou maiores proporções no final de 2015, quando o STF julgou o RE 632.853, em regime de Repercussão Geral, gerando a seguinte tese (Tema 485): “Recurso extraordinário com repercussão geral. 2. Concurso público. Correção de prova. Não compete ao Poder Judiciário, no controle de legalidade, substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a elas atribuídas. Precedentes. 3. Excepcionalmente, é permitido ao Judiciário juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital do certame. Precedentes. 4. Recurso extraordinário provido”. À primeiro momento, muitos tiveram a impressão de que a banca examinadora e, consequentemente, a administração pública, somente seriam responsabilizadas se ultrapassassem o limite de conteúdo elencado no edital do certame. Tal entendimento absolutamente não deve prevalecer. Se assim fosse, estaríamos voltando no tempo, indo de encontro à Justiça. Referida tese deve ser aplicada e interpretada através de uma análise sistêmica do Direito Administrativo, tendo em vista que os atos existentes na realização de um concurso público são “atos administrativos”, devendo obedecer os princípios e institutos à eles aplicados.
A administração possui liberdade para agir quando o assunto é concurso público? Ela somente será responsabilizada em casos que fugir do conteúdo proposto no edital?
De certa, a administração pública tem ampla liberdade para agir, mas sempre observando os critérios legais. E é exatamente por esta razão (sujeição à lei) que ela poderá ser responsabilizada por outras situações que não a fuja de conteúdo na aplicação de uma prova. Ou seja, o nosso Estado, sendo organizado e mantido por um sistema de freios e contrapesos, deve agir dentro de aspectos legítimos e democráticos, sob pena de um Poder constitucionalmente estabelecido agir sobre o outro, em uma espécie de agente fiscalizador.
Como isso se aplica quando a administração pública elabora um concurso?
O processo de elaboração de um concurso possui várias etapas. Parte da discricionariedade da administração em dar o “start” à contração. Essa decisão, em fazer ou não o concurso, pode ser pensada como a parte com maior discricionária possível, guardadas algumas exigências legais e orçamentárias.
Após a decisão de promover o concurso a administração contrata uma banca examinadora, que ficará responsável por diversas etapas do concurso. É exatamente após este momento que começam a surgir os questionamentos entre DISCRICIONARIEDADE e LEGALIDADE. Como se trata de ATOS ADMINISTRATIVOS na sua literal acepção da palavra, todos os atos devem, necessariamente, apresentar elementos válidos e eficazes (COMPETÊNCIA, OBJETO, FINALIDADE, FORMA e MOTIVO). Ou seja, todos os atos possuem uma margem de discricionariedade, mas absolutamente todos devem obedecer as diretrizes normativas da lei, sob pena de serem invalidados ou anulados pelo Poder Judiciário, através do que chamamos de sindicabilidade.
Quais os problemas que os candidatos encontram hoje?
Infelizmente, devido à negligência de algumas bancas examinadoras, são vários. Vão desde exigências desarrazoadas contidas no edital, como idade máxima para assumir cargos intelectuais, matérias exigida em nível muito acima do nível do cargo, provas orais analisadas de forma desproporcional entre os mesmos candidatos, exames de saúde invasivos, exames psicotécnicos feitos sem o devido amparo legal, até erros crassos cometidos pela bancas no momento da correção da prova.
Todas estas situações configuram em ilegalidades que deve ser corrigidas pelo Judiciário, mesmo que a tese da repercussão geral (Tema 485 do STF) tenha aberto a exceção apenas para que o Judiciário analise exigências fora do conteúdo.
Especificadamente, no que se refere ao tema 485 do STF (RE 632.853), quais são as obrigações da administração e quais os direitos do candidato?
Em regra, a administração tem uma margem de atuação (discricionariedade), a qual nunca pode extrapolar a razoabilidade e a proporcionalidade oriunda da lei. Por outro lado, o candidato tem o direito de socorrer-se no Judiciário quando sentir-se prejudicado em face de arbitrariedades e/ou ilegalidades cometidas pela administração.
Conforme já salientado, o STF, decidindo o RE 632.853, em regime de repercussão geral, decidiu que “não compete ao Poder Judiciário, no controle de legalidade, substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a elas atribuídas. Excepcionalmente, é permitido ao Judiciário juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital do certame.” Tal afirmativa tem aplicação direita e imediata sobre os atos praticados pela administração pública/banca examinadora na elaboração de um concurso público e deve ser interpretada dentro de um sistema jurídico administrativo-constitucional, sob pena das bancas examinadoras tornarem-se soberanas, situação extremamente prejudicial ao candidato. Não é razoável se permitir a manutenção de abusos cometidos pela administração pública à pretexto de defesa da isonomia, sendo dever do Poder Judiciário declarar sua nulidade quando houver qualquer tipo de ilegalidade.
É importantíssima a adequada atuação do operador do Direito, de modo a comprovar a ilegalidade no certame.
A tese repetitiva deve ser interpretada, analisando-se o voto de todos os ministros participantes do julgamento. Neste aspecto, os ministros da Corte Suprema, em momento algum, negaram a possibilidade do Judiciário corrigir ilegalidades. No presente caso buscou-se solidificar a tese de que a banca examinadora não se sujeitará ao controle do Judiciário quando agir conforme a lei e quando divulgar gabaritos amparados por doutrina e jurisprudência dominante.
Assim, quando houver ilegalidades nos atos administrativos, aplica-se o distinguishing entre os casos, de modo a amparar a atuação do Judiciário. Neste sentido, arrematou o julgamento, a seguinte proposição do Min. Ricardo Lewandowski: “Evidentemente, diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição, os casos teratológicos serão naturalmente revistos.”
Então o candidato está amparado pelo Judiciário em razão de equívocos cometidos pela banca examinadora?
Sim. E não poderia ser diferente, já que a última ratio na tentativa de correção de ilegalidades é o Judiciário. Daí a importância de se aplicar o distinguishing entre o caso concreto e o RE 632.853, expondo e comprovando a existência de ilegalidade. Neste aspecto, é importantíssima a adequada atuação do operador do Direito, de modo a comprovar a ilegalidade, seja oriunda de um erro grosseiro em questão objetiva, seja proveniente de exigência de títulos não amparados pelo edital, seja por predileções comprovadas em provas orais, dentre inúmeras outras.
Especificadamente, nos casos de divergências de entendimento entre respostas de questões em concurso público, desde que fundamentadas em lei/doutrina/jurisprudência, o Judiciário não deve agir. Entretanto, quando não houver o respaldo de qualquer raciocínio coerente para a resolução da questão, a atuação do Judiciário é imperiosa, sob pena de se comprazer em uma absoluta ilegalidade. No caso, o Judiciário não estará adentrando no mérito do ato administrativo, mas sim sanando a ilegalidade existente no referido ato. São esses aspectos que devem ser provados e explicitados pelo operador do Direito.
Por fim, leitores do Caderno Jurídico, comprovando-se a ilegalidade (daí a importância da adequada técnica processual do operador do Direito), não restam dúvidas da necessidade do Judiciário controlar a banca examinadora. Entendimento contrário vai de encontro ao sistema inato de freio e contrapesos entre os poderes constitucionais, sendo campo fértil para direcionamentos de candidatos, os quais devem ser veementemente reprimidos.
Friso aqui a importância do comprometimento de nós todos, operadores do Direito, servidores públicos e candidatos, seja fazendo o controle preventivo (administração agindo conforme a lei), seja fazendo-se o controle repressivo e judicial (quando banca não utilizar-se do poder de autotutela).
A boa notícia é que, de uma forma geral, a jurisprudência do STF, STJ e TRF’s vem apresentando decisões admitindo a anulação de questões flagrantemente ilegais. Entretanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido, especialmente em casos de contratação temporária havendo concursos abertos, cotas raciais, cotas econômicas e exames psicotécnicos.
Aproveito para informar aos leitores que estamos escrevendo artigo completo e atualizado, com jurisprudências, processos e demais consectários legais. Feliz Natal a todos e que 2018 seja um ano repleto de ótimas notícias sobre concursos.
Publicado no jornal impresso de dezembro de 2017.
Anderson Spagnollo
Da Redação
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