ESPAÇO ACADÊMICO
A validade da delação premiada feita por réu preso
O instituto da colaboração premiada, a conhecida “delação premiada”, embora já fosse previsto em algumas legislações esparsas no Brasil, como nas leis 8.072/90, artigo 8°, § único, (Lei de Crimes Hediondos); lei 9.613/98, artigo 1°, § 5° (Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro); lei 9.807/1999, artigos 13 e 14 (Proteção às Testemunhas); e lei 11.343/2006, artigo 41 (Tráfico de Drogas), entre outras, ganhou força e notoriedade a partir da lei 12.850/2013 (Lei do Crime Organizado) e, da deflagração de grandes operações policiais que foram e são amplamente noticiadas pela mídia, como por exemplo a Operação Lava Jato.
A contribuição premiada é um instituto muito eficaz e necessário, tendo em vista que se mostra muito difícil chegar e punir todos os envolvidos em investigações envolvendo grandes organizações criminosas. Assim, anotam Fonseca, Tabak e Aguiar (2015), que quando se trata de crimes graves, normalmente praticados por organizações criminosas do tipo “mafioso”, o que prevalece entre os investigados é a lei do silêncio (omertà), sendo que a descoberta ou o desbaratamento só ocorre quando um participante do grupo resolver falar.
Notório é o relato do desmantelamento da máfia italiana Cosa Nostra, na década de 80, que só foi possível graças à eficácia da investigação regida pelo magistrado Giovanni Falcone, que utilizou a colaboração premiada dos acusados que haviam sido capturados pela polícia para alcançar os ‘chefões’.
No Brasil, frequentemente se vê nos jornais, ou em qualquer outro meio de veiculação de notícias, que estão sendo firmados acordos de delação premiada. A lei 12.850/2013 prevê, no artigo 3°, inciso I, a colaboração premiada como meio de obtenção de prova em qualquer fase da persecução penal. Evidentemente que as informações do colaborador devem ser acompanhadas de, ao menos, indícios probatórios que comprovem sua veracidade, além de resultar em pelo menos um dos resultados elencados no artigo 4° da referida lei, a saber:
“Identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa e a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada” (BRASIL, 2013).
O legislador inovou ao dispor que o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia ao primeiro que prestar colaboração efetiva com a Justiça, desde que este não seja o líder da organização criminosa (artigo 4°, §4° e incisos).
O acusado preso e com a ciência que outros membros da organização estão na mesma situação, existe uma oportunidade de total importância pelo confronto de informações e provas. Essa oportunidade deve ser acolhida o quanto antes, porque a oferta de contribuição premiada que lhe é feita pode resultar, inclusive, num acordo com o Ministério Público para o não oferecimento de denúncia. Isso também será feito aos outros membros da organização presos e apenas o primeiro a colaborar de maneira efetiva com a Justiça é que eventualmente desfrutará do benefício, podendo, ou não, se safar de um processo criminal.
Com a grande cobertura da mídia dos acordos de contribuição premiada firmados entre acusados e a Justiça, passou-se a questionar a validade de tal prática quando o acusado está preso. Há a discussão se a prisão não seria um instrumento para forçar uma ‘delação’ do preso, uma vez que o texto legal é claro ao determinar que a delação deve ser, além de efetiva, voluntária por parte de quem a faz (artigo 4° caput, da lei 12.850/2013).
Com isso, os críticos mais ferozes chegam a dizer que delação premiada é o Estado se rebaixando ao nível dos criminosos, buscando um acordo com os infratores e muitas vezes prendendo apenas com o intuito de forçar uma contribuição por parte desses.
Ocorre que os acordos firmados entre a Justiça e os acusados com o objetivo de se chegar a um número maior de envolvidos não são, em hipótese alguma, um “rebaixamento” ao nível dos infratores. O fechamento de acordos de delação faz-se necessário para que o Estado possa mostrar, não só aos criminosos envolvidos e, aos que pensam em se envolver em tal prática, mas também à sociedade, o poder que tem de punição e alcance a todos que incorrem na prática delitiva.
Ora, é mais interessante à Justiça, e até à população que mormente acompanha as operações apenas pela televisão, justamente alcançar ou ver alcançados todos os criminosos envolvidos na realização, planejamento e prática de crimes de grande monta, uma vez que assim desmantela-se uma organização criminosa inteira, além do fato desses delitos financeiros normalmente envolverem o desvio e lavagem de dinheiro público. Dessa forma, chega-se aos envolvidos situados desde a mais simples posição hierárquica na quadrilha até os ‘chefões’, mesmo que esses, muitas vezes, sejam poderosos empresários e conhecidas autoridades políticas.
Não obstante, quando se discute sobre a validade da delação realizada pelo réu que se encontra preso, vale o esclarecimento que somente estará privado da liberdade aquele que recebeu uma sentença condenatória do Estado, ou nas situações em que o juiz entenda ser cabível a prisão preventiva. No primeiro caso, que não se fale em invalidade da delação por ter havido coação para a obtenção informações, uma vez que a sentença que determina a privação de liberdade é uma sanção legítima aplicada pelo Estado àqueles que incorreram na prática de um delito, observado sempre o princípio constitucional da individualização da pena (CF, artigo 5°, inciso XLVI).
Já nos casos de prisão preventiva, somente poderá o juiz determiná-la se entender que a situação se encaixa num dos motivos taxativos positivados no artigo 312 do Código de Processo Penal, a saber:
“Como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.” (BRASIL, 1941)
Dessa forma, pelo fato da lei 12.850/2013 exigir voluntariedade na ação do acusado que realizada uma contribuição premiada, esta somente será válida se, além de voluntária, vier acompanhada de indícios probatórios com os quais o Ministério Público ou a autoridade policial possam comprovar a veracidade das informações prestadas. Deve resultar, porém, em um ou mais resultados elencados taxativamente no artigo 4° da referida legislação, caso em que, independente do réu estar preso por sentença condenatória, ou em prisão preventiva no momento da delação, ainda será válida.
Artigo escrito por Rafael Guimarães Ribeiro, bacharelando em Direito pela Unipar, Campus Umuarama/PR e participante do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).
Orientado pelo professor Alessandro Dorigon, especialista em Direito e Processo Penal pela UEL, mestre em Direito Processual e Cidadania (Unipar), professor adjunto da disciplina de Direito Penal II (Unipar, campus Umuarama) e professor adjunto e coordenador da disciplina de Prática de Processo (Unipar, campus de Paranavaí) e advogado, atuando nas áreas criminais e trabalhistas. Dorigon é autor do livro “Execução Civil da Sentença Penal e o Novo CPC” (Editora Juruá 2017).