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Jornal Caderno Jurídico

Direito Internacional

Lei “pessoal” do de cujus pode ser também a lei da nacionalidade

1/3/2017 às 1h14 | Atualizado em 1/3/2017 às 2h25 - Valerio Mazzuoli
Valerio Mazzuoli

A regra do art. 5º, XXXI, da Constituição Federal de 1988, possibilita a aplicação da “lei pessoal do de cujus” quando, no caso da sucessão de bens de estrangeiros situados no País, for essa lei mais benéfica ao cônjuge supérstite ou aos filhos brasileiros. A doutrina nacional, contudo, se confunde no que vem a ser “lei pessoal” no texto constitucional, se a do domicílio ou da nacionalidade do de cujus. Além de titubear quanto ao tema, muitos autores (se verá) desviam a atenção do leitor quanto ao problema aparentemente insolúvel, deixando ainda mais pantanoso o terreno que se está a pisar. Vejamos – por meio do inventário doutrinário – como constitucionalistas, civilistas e jusprivatistas respondem à indagação proposta. Ao final, apresentaremos a nossa solução.

José Afonso da Silva, ao comentar o art. 5º, XXXI, da Constituição, aduz simplesmente que a lei pessoal do de cujus, “[e]m princípio, é a lei do país em que era domiciliado o defunto, conforme mencionado no art. 10 da LICC [hoje, LINDB].[1] O autor diz que “em princípio” seria a lei do país em que domiciliado o defunto, sem, no entanto, referir quais seriam as exceções possíveis.

Alexandre de Moraes, por sua vez, afirma que se o de cujus estrangeiro for domiciliado no Brasil “sua sucessão reger-se-ia, em regra pela própria lei brasileira, salvo se a lei de seu país de origem [se já era o falecido domiciliado no Brasil, não sobraria outra lei, evidentemente, a não ser a da sua nacionalidade] fosse mais favorável ao cônjuge supérstite ou a seus descendentes brasileiros”. No caso inverso, de o de cujus estrangeiro ser domiciliado no exterior, aduz o autor que “seria a lei estrangeira [qual lei? a do domicílio ou da nacionalidade?] que, em regra, regeria sua sucessão”.[2] Perceba-se, portanto, a confusão que faz o autor ao referir, primeiro, à “lei de seu país de origem” (que é a lei da nacionalidade do de cujus), e, depois, ligar a “lei estrangeira” (apesar não claramente) ao domicílio do autor da herança.

Pelos dois constitucionalistas citados, portanto, percebe-se não haver claridade sobre o real delineamento constitucional da expressão “lei pessoal” referida no art. 5º, XXXI, da Constituição de 1988.

 

O que dizem, então, os civilistas?

Pontes de Miranda, ao comentar o art. 134 da Constituição de 1934, entendia que o “estatuto do de cujus” só poderia ser o que “o Estado da nacionalidade o diz”. Entendia Pontes que “[d]esde o momento em que o Brasil cessa de querer que a sua lei se aplique, porque ‘o estatuto do de cuius’ é mais favorável, só ao Estado da nacionalidade é que se têm de fazer as perguntas relativas a superdireito”.[3] Frise-se, porém, que Pontes de Miranda escreveu o seu Tratado de direito internacional privado (1935) antes da entrada em vigor da Lei de Introdução do Código Civil (1942), e, portanto, raciocinava à luz do estatuto pessoal determinado pelo critério da nacionalidade (situação posteriormente alterada no Brasil com o advento da LICC).

Maria Helena Diniz, por sua vez, ao comentar art. 10, § 1º, da LINDB, parece, a priori, entender também ser a “lei pessoal do de cujus” a lei da nacionalidade deste, não a do seu domicílio. De fato, inicia a autora por dizer que “se o autor da herança for mexicano (lei pessoal) e houver deixado cônjuge brasileiro, que deve concorrer com ascendentes daquele, não se aplicará a lei brasileira, mas a mexicana…” [grifo nosso]; e complementa afirmando, com um pouco mais de clareza, que “[s]e o inventário for promovido no Brasil, a partilha dos bens será feita segundo a lei brasileira, em benefício do cônjuge ou filhos brasileiros, exceto se a lei nacional do de cujus lhe for mais favorável” [grifo nosso]. Aí se vê, então, a opinião da autora de que, a priori, a lei “pessoal” do falecido seria a da sua nacionalidade.[4] Pouco mais à frente, porém, a civilista aduz que “a lei brasileira aplicar-se-á à vocação para suceder, em relação aos bens deixados no Brasil, mesmo quando a lei do último domicílio do falecido for a estrangeira, se este deixou cônjuge e filho brasileiros e a lei alienígena do domicílio não lhes for mais benéfica” [grifo nosso].[5] Aqui, como se vê, se inicia a confusão. Destaque-se que pouco mais à frente cita a autora trecho de Serpa Lopes que destaca que “se a lei nacional do de cujus for entretanto mais favorável, aplica-se esta” [grifo nosso], com o que parece concordar.[6] Volta aqui, mais uma vez, a falar em lei da nacionalidade… Portanto, inconclusivo o pensamento de Maria Helena Diniz.

Analisada a doutrina constitucionalista e civilista, resta saber o que pensam os autores jusprivatistas. Vamos a eles.

Inicialmente, destaque-se que Jacob Dolinger e Carmem Tiburcio apenas transcrevem a regra constitucional (art. 5º, XXXI) e infraconstitucional (LINDB, art. 10, § 1º) sem qualquer comentário sobre o que viria a ser “lei pessoal do de cujus” em ambas as normas.[7] Irineu Strenger, por sua vez, em breve citação de Oscar Tenório, vai apenas dizer que “[a] Lei de Introdução considera como lei pessoal do de cujus a lei do país em que era domiciliado o defunto, ou o desaparecido”.[8] Nenhuma palavra sobre como definir a lei pessoal, portanto, se vê em ambas as obras.

Nadia de Araujo, por sua vez, ao comentar a regra do art. 5º, XXXI, da Constituição, inicia por dizer que “uma leitura mais atenta da segunda parte do artigo demonstra que, antes de ser aplicada a lei brasileira, é necessário efetuar uma análise detida da lei estrangeira [qual lei? a do domicílio ou da nacionalidade do de cujus?] para que se possa avaliar se é ou não mais benéfica do que a nossa lei”.[9] Mais à frente, destaca que “é preciso ter cuidado na interpretação do alcance do princípio de proteção da família, na sucessão internacional, para promover a exegese correta da aplicação da lei mais benéfica [novamente, qual essa lei?], pois utiliza-se, no mais das vezes, exclusivamente a lei brasileira sem o prévio estudo do direito comparado, para averiguar se a regra estrangeira [qual regra? a domiciliar ou a nacional?] é mais benéfica do que a brasileira”.[10] Até aqui, portanto, a autora não responde qual seria, em sua opinião, a “lei pessoal” do de cujus, desviando sempre o texto para as expressões-gênero “lei estrangeira” e “regra estrangeira”. Em tópico intitulado A sucessão e o DIPr a autora retorna mais uma vez ao vazio ao afirmar que “em havendo filho ou cônjuge brasileiro, a sucessão seguirá as normas brasileiras, a menos que a lei estrangeira [novamente, qual lei?] seja mais benéfica”.[11] Nadia de Araujo, por último, cita julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em que se decidiu aplicar norma portuguesa (último domicílio do de cujus) mais benéfica para os filhos brasileiros (dois terços do patrimônio compunham a legítima) do que a regra da lei brasileira (só a metade).[12] Aqui, portanto, a única referência ao domicílio em seu texto (no âmbito, frise-se, da citação de acórdão do TJRJ). A autora, como se nota, passa ao largo da hipótese de ser o falecido domiciliado no Brasil e a lei de sua nacionalidade mais benéfica para o cônjuge e os filhos brasileiros. Em suma, o texto de Nadia de Araújo é também inconclusivo quanto a esse tema.

Maristela Basso, em breve passagem, afirma que “[a] norma da Constituição procura corrigir quaisquer distorções quanto ao resultado alcançado pela norma indireta de direito internacional privado, como quando o art. 10 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro de 1942 indicasse um direito do último domicílio do de cujus para reger sua sucessão e fosse este desfavorável para o cônjuge e os filhos brasileiros”, concluindo que “[l]ido com o art. 10, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro de 1942, o dispositivo constitucional assegura uma ordem de vocação hereditária territorial em contraposição à lei pessoal do de cujus, no caso, a lei de seu último domicílio (lex domicilii).[13] A autora, como se vê, firma a sua posição de que a lei pessoal do de cujus seria, no caso, a lex domicilii. Qualquer outro desenvolvimento, contudo, não aparece no texto.

Gustavo Ferraz de Campos Monaco e Liliana Lyra Jubilut, por sua vez, entendem ser a “lei pessoal do de cujus” a do último domicílio do falecido, quando afirmam que para saber qual a lei mais benéfica ao cônjuge ou aos filhos sucessores de nacionalidade brasileira “devem-se comparar o direito sucessório do último domicílio do de cujus e o direito sucessório brasileiro, aplicando-se aquele que for mais benéfico ao cônjuge ou aos filhos sucessores de nacionalidade brasileira” [grifo nosso].[14]

Hee Moon Jo, por fim, após dizer que “o Brasil prioriza o domicílio como elemento de conexão no caso da lei pessoal”, e que “a adoção da lei do último domicílio do falecido (e desaparecido) é lógica”, aduz apenas que como mostra o art. 10, § 1º, da LINDB, “a lei se preocupa com a proteção dos herdeiros da sua nacionalidade”.[15] Nada sobre a definição do que vem a ser “lei pessoal”, portanto, se encontra em sua obra.

À luz das obras dos jusprivatistas citados, de duas, uma: ou é tão óbvia a resposta que se pretende obter que a doutrina em questão não fez questão de respondê-la, ou não há, efetivamente, clareza de entendimento sobre o conteúdo de que se trata. A nós, parece fazer mais sentido a segunda opção.

Os autores que entendem ser a “lei pessoal do de cujus” a lei do seu último domicílio raciocinam à luz do caput do art. 10 da LINDB, segundo o qual “[a] sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens”. Sendo a norma constitucional (art. 5º, XXXI) idêntica à do § 1º do art. 10 da LINDB, tais autores, crê-se, no afã de interpretar o parágrafo conforme o caput, trazem consigo a norma constitucional a rebote, como se possível fosse interpretar norma constitucional à luz de lei ordinária, como é o caso da LINDB. Esquecem-se que a regra disciplinadora da sucessão de bens de estrangeiros situados no país é constitucional, antes de meramente legal.

A verdade, porém, é que a Constituição (e, igualmente, o § 1º do art. 10 da LINDB) excepcionou a regra domiciliar unitária caso seja mais benéfica a lei da nacionalidade do de cujus residente no Brasil, ou se a lei de sua nacionalidade for mais benéfica que a lei de seu domicílio, no caso de estrangeiro domiciliado no exterior quando de seu falecimento. Como se vê, nada obsta que se continue a utilizar o critério domiciliar se este for mais benéfico que o da nacionalidade, no caso de o estrangeiro falecido ter domicílio no exterior. Porém, como na maioria dos casos os estrangeiros que têm bens no Brasil também aqui são domiciliados, impedir a utilização do critério nacional para aferição da lei mais benéfica violaria o espírito e a amplitude que o texto constitucional pretendeu consagrar. Não faria qualquer sentido ser a “lei pessoal” a do domicílio do de cujus quando, na prática, na grande maioria das vezes, seria ela própria a lex fori.

Não há dúvidas de que a referência do texto constitucional à “lei pessoal do de cujus” há de ser qualificada (estando o de cujus domiciliado no Brasil ao tempo do falecimento) também nos termos da lei da nacionalidade, se for esta mais benéfica ao cônjuge supérstite ou aos filhos brasileiros. De fato, se assim não fosse, ficariam estes (cônjuge e filhos brasileiros) sem qualquer outra chance de galgar o benefício constitucional, já que, sendo o de cujus domiciliado no Brasil, a lei brasileira (e mais nenhuma outra) seria aplicada, confundindo-se a lei pessoal do de cujus (lei domiciliar, no entendimento tradicional) com a própria lex fori.

Ademais, reafirme-se que a grande maioria dos estrangeiros que têm bens no Brasil são também aqui domiciliados, pelo que não faria sentido a Constituição ter aberto exceção à “lei pessoal do de cujus” se se entendesse que tal lei pessoal seria, sem exceção, a lei do domicílio. Não haveria, portanto, salvo na escassa minoria dos casos, qualquer lei mais benéfica a ser eventualmente aplicada ao caso concreto, o que foge à lógica e ao espírito do contemporâneo DIPr. Coerente, portanto, com a vontade constitucional é entender que tanto o art. 5º, XXXI, da Constituição, como o art. 10, § 1º, da LINDB, abriram exceção à regra domiciliar nos casos de estrangeiros domiciliados no Brasil e no exterior.

Com essa solução que se acaba de propor poderia o juiz optar pela lei do domicílio ou da nacionalidade do de cujus, indistintamente. Caso o último domicílio do autor da herança tenha sido no Brasil, poderá o juiz verificar se pela lei de sua nacionalidade não haveria benefícios maiores para o cônjuge ou para os filhos brasileiros; caso o último domicílio do de cujus tenha sido no exterior, poderá o juiz verificar tanto (a) a lei do domicílio quanto (b) a lei da nacionalidade do autor da herança, para o fim de encontrar a norma mais benéfica aplicável à relação jurídica, sem distinção de uma à outra. Caso, por fim, nenhuma das duas seja mais benéfica que a lei brasileira, de aplicar-se, evidentemente, a lei nacional. Tollitur quaestio.



[1] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 126.

[2] MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 191.

[3] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito internacional privado, t. II (Parte Especial). Rio de Janeiro: José Olympio, 1935, p. 271-272.

[4] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 329.

[5] DINIZ, Maria Helena. Idem, ibidem.

[6] DINIZ, Maria Helena. Idem, p. 330.

[7] DOLINGER, Jacob & TIBURCIO, Carmem. Direito internacional privado: parte geral e processo internacional. 12 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 356.

[8] STRENGER, Irineu. Direito internacional privado: parte geral, direito civil internacional, direito comercial internacional. 6. ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 748.

[9] ARAUJO, Nadia de. Direito internacional privado: teoria e prática brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 412.

[10] ARAUJO, Nadia de. Idem, p. 412-413.

[11] ARAUJO, Nadia de. Idem, p. 416.

[12] ARAUJO, Nadia de. Idem, p. 419.

[13] BASSO, Maristela. Curso de direito internacional privado. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2011, p. 223.

[14] MONACO, Gustavo Ferraz de Campos & JUBILUT, Liliana Lyra. Direito internacional privado. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 90 (Coleção Saberes do Direito, vol. 56; Alice Bianchini & Luiz Flávio Gomes, Coords.).

[15] JO, Hee Moon. Moderno direito internacional privado. São Paulo: LTr, 2001, p. 517-518.

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