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Jornal Caderno Jurídico

ESPAÇO ACADÊMICO

Suposta ilegalidade da prova: análise sobre o caso do anestesista acusado de estupro

3/12/2022 às 2h28 - Isabela Buosi
Divulgação Isabela Buosi Estudante Isabela Ribeiro explica que o registro audiovisual de um flagrante delito é prova idônea de sua prática

Dia 10 de julho deste ano veio uma notícia que chocou a todos. Um médico anestesista praticando atos libidinosos diversos de conjunção carnal em sua própria paciente durante a cirurgia de cesárea, utilizando de altas doses de sedativo, situação que culminou em sua prisão em flagrante pelo delito de estupro de vulnerável. O caso é alvo de críticas nas mídias sociais, seja por conta da ilegalidade das provas, da conduta do médico, da prisão em flagrante e entre outros assuntos. Este artigo focará na possibilidade de reconhecimento ou não da ilicitude das provas.

O crime praticado em questão geralmente se consuma longe de testemunhas oculares, atribuindo a palavra da vítima um alto valor probatório. No caso em tela, sequer a vítima estava apta de entender o ato ilícito praticado. Levando em conta a razoabilidade e proporcionalidade, será admitido atribuir valor probatório aos vídeos gravados “clandestinamente”?

Sobre a conduta do médico, verifica-se que este aplicou medicamento sedativo na vítima, ora a sua paciente, por sete vezes (laudo médico apontou Cetamina e Profonol). Em seguida, o suspeito introduziu o pênis na boca da vítima, a qual estava sedada e, somente dez minutos depois, ele cessa o ato, limpa o rosto da vítima e descarta o material.

Não há dúvidas quanto ao delito cometido. A conduta se enquadra com no artigo 217-A do Código Penal, em específico no seu parágrafo 1º. É um crime hediondo, tendo como objeto material a pessoa vulnerável, sendo que a sua vulnerabilidade implica na invalidade do consentimento, admitindo tão somente a modalidade dolosa. Quer dizer, o suspeito, valendo-se da situação de vulnerabilidade da vítima, tendo em vista que estava sedada e não possuía o necessário discernimento para o ato, bem como sequer poderia oferecer resistência, praticou atos libidinosos diversos de conjunção carnal.

Em relação à conduta das enfermeiras, observa-se que estas, desconfiando do comportamento do médico durante os dois primeiros partos em que estavam presentes, decidiram filmar o terceiro, colocando um celular escondido dentro de um armário para gravar o procedimento.

A prova obtida foi por intermédio de uma interceptação ambiental stricto sensu, conceituada pelo doutrinador Norberto Avena como a “hipótese na qual terceiro registra sons ou imagens envolvendo a conversa ou comportamento de duas ou mais pessoas sem que haja o conhecimento destes”.

Fazer uma captação ambiental sem autorização das partes ou judicial pode ser entendida como crime, pelo que dispõe o artigo 10-A da Lei 9.296/96, com alteração trazida pela Lei 13.964/2019, dispondo que: “Realizar captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos para investigação ou instrução criminal sem autorização judicial, quando esta for exigida”.

O crime não se trata de um delito de mão-própria, conforme explica o doutrinador Norberto Avena: “não concebemos a conduta criminosa descrita no artigo 10-A em exame de um crime próprio. Logo pode ser cometido por qualquer pessoa. Isto fica claro, aliás, quando se compulsa a norma do §2° do mesmo dispositivo, este sim vinculando sua incidência à condição de ser o agente funcionário público.”

 

Suposta ilegalidade dos vídeos obtidos como prova

As enfermeiras, na tentativa de obter provas contra o médico, realizaram uma captação ambiental stricto sensu, sendo discutido se esta conduta incorre no crime previsto no artigo 10-A da Lei 9.296/1996. Porém, antes de adentrar em maiores explicações sobre a ilegalidade da prova, é importante investigar as seguintes questões:

Não há previsão expressa da tutela direta para as captações ambientais em nossa Carta Magna, incorrendo tão somente a proteção genérica disposta no artigo 5º, X, da CF, sendo que, tal artigo, sequer dispõe sobre a necessidade de ordem judicial, diferente do exposto no sigilo telefônico previsto no inciso XII do mesmo artigo. Para analisar a possibilidade de ilicitude das provas, deve-se verificar se no ambiente em que os registros foram realizados existia expectativa de privacidade.

Além do mais, em 2019, por meio do pacote Anticrime, foi inserido o artigo 8º -A à Lei 9.296/96, dispondo que “para investigação ou instrução criminal, poderá ser autorizado pelo juiz, a requerimento da autoridade policial ou pelo Ministério Público, a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos”. Bem como, sobreveio a criminalização da conduta de captação ambiental sem autorização judicial, quando esta for exigida (artigo 10-A da Lei 9.296/96).

O delito ocorreu num hospital público, numa sala de cirurgia. Não é ambiente privado. A sala de parto não pode ser considerada um ambiente secreto para o médico praticar atos que bem entender. Pelo contrário, o sigilo previsto concerne ao fato do paciente preservar a sua identidade.

 

Intimidade x liberdade sexual

Cumpre analisar mais uma questão sobre o assunto, referente à ponderação entre o bem jurídico dos supostos dois crimes cometidos. Começando pelo delito previsto no artigo 10-A da Lei de Interceptação Telefônica. Tal tipo resguarda a intimidade e a privacidade do indivíduo, garantindo que gravações clandestinas não sejam validadas como provas acusatórias, conforme o explicado pelo doutrinador Norberto Avena.

Quanto ao crime de estupro de vulnerável, o bem jurídico tutelado é a dignidade sexual dos vulneráveis, com a finalidade de proteger a integridade e a privacidade de tais pessoas no âmbito sexual, explicação exposta pelo jurista Cleber Masson.

Acompanhe o entendimento de Fernando Capez:

“Evidentemente, o registro fotográfico ou audiovisual de um flagrante delito é prova idônea e inequívoca de sua prática, além de perfeitamente lícita, a qual é utilizada costumeiramente para lastrear condenações consideradas válidas pela Justiça. A sala de parto pode até ser considerada um ambiente privado para o resguardo da intimidade da gestante, nunca do criminoso que a estuprou. Na ponderação de valores, a dignidade sexual da vítima e sua integridade física, assim como a do bebê, prevalecem sobre uma suposta e absurda garantia para o estuprador de não ser filmado cometendo a violência sexual.”

Quantos casos, quantas cirurgias e quantas vítimas passaram nas mãos deste médico? Mesmo com o grande avanço da sociedade, ainda nos deparamos com diversas situações de hierarquia de gênero e objetificação do corpo feminino para o cunho sexual, até mesmo durante o nascimento do seu filho. Dia a dia, ouve-se casos e mais casos em que a mulher teve a sua liberdade sexual violentada, tirada as forças de sua vontade.

 

Inadmissível!

É inaceitável vendar os olhos diante desta inadmissível situação! Nem num hospital público, durante uma cesárea, onde há presunção de segurança, não é possível preservar e respeitar a mulher, ainda mais tentar invalidar as gravações sob a justificativa de violação da intimidade do suspeito!

A declaração de ilegalidade das gravações colhidas num momento de desespero e vulnerabilidade da vítima é absurda!

Mais um caso para o índice. Mais um local onde mulheres vão se sentir amedrontadas. E mais uma vida arruinada em razão do pensamento retrógado de objetificação feminina e superioridade, onde o masculino se acha no direito de tomar condutas que bem entender e que não possui o mínimo de respeito por aquela.

Para finalizar, considerando que o delito ocorreu em local acessado pelas enfermeiras e em razão da necessidade de um maior cuidado nos crimes contra a liberdade sexual, a prova obtida por meio das gravações deve ser admitida como meio de prova válida para este caso.

 

Isabela Buosi Ribeiro é estudante de Direito na UNIPAR, câmpus Umuarama.

Artigo escrito com a orientação de Alessandro Dorigon, mestre em Direito Processual e Cidadania, especialista em Direito e Processo Penal e em Docência e Gestão do Ensino Superior, professor de Direito Penal da UNIPAR e advogado criminalista.

Artigo está nas páginas impressas do Caderno Jurídico, de 23 de setembro de 2022. Acesse também www.jornalcoluna.com.br e folheie o berliner pelo celular acompanhado de um café ou um chimarrão.

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