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Jornal Caderno Jurídico

Direito Penal e Educação

Vert: a hipocrisia é verde

12/11/2019 às 16h34 | Atualizado em 12/11/2019 às 16h49 - Sergio Gurgel
Divulgação Sergio Gurgel “Quando somos capazes de chorar pelo mico-leão, ao mesmo tempo em que fechamos os olhos às famílias que fazem a ceia com comida podre, todo debate político, social, jurídico e religioso perde inteiramente o objeto”, afirma Gurgel

Depois de termos vivido a época de um mundo dividido em dois blocos de defesa militar, constituídos por países membros da OTAN e do Pacto de Varsóvia, denominado pelos historiadores como a “Era dos Extremos”, é provável que as futuras gerações venham denominar o momento atual como a Era da Hipocrisia.

Em outros tempos, nossos ascendentes desprendiam considerável energia em busca do autoconhecimento, uma verdadeira batalha inconsciente pela conquista da própria identidade, ainda que baseada em esteriótipos criados pelas histórias em quadrinhos, ou pelas grandes produções cinematográficas. Nos dias atuais, o homem moderno tem evitado olhar para a sua imagem refletida em qualquer lugar, exceto nas águas rasas, e sem marola, de seu alter-ego. Habituou-se a criar vários perfis, para cada qual há um avatar imponente e heróico, um username pouco criativo, um login que costuma não lembrar, e um punhado de mentiras sobre si mesmo. O homem da Era da Hipocrisia possui múltiplas personalidades, assim como um corpo de várias cabeças contendo duas ou mais faces.

Faz tempo que a humanidade vem tentando aprender a tolerar opiniões conflitantes e a conviver com as adversidades. Com execeção daqueles que ainda relutam em aceitar o homem como um ser variado, desejando ver a face da Terra sob o domínio de androides uniformizados em marcha ao estilo do passo de ganso, tornou-se mais comum observar a coexistência dos opostos, apesar da proliferação dos entendiantes discursos eivados do modismo da vitimização.

Realmente é revigorante ouvir estudantes letrados reproduzindo as palavras atribuídas a Voltaire (1694-1778): “Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo.” (forma de pensar tão revolucionária, que até a futura discussão sobre a respectiva autoria já estava asseguarada). Não obstante a influência da visão de mundo dos iluministras, mediante a qual ficou mais fácil aceitar os argumentos de todos os lados; tanto dos que rezam quanto dos que oram; dos que raciocinam ou decoram; dos que se intitulam macho ou fêmea; a liberdade de pensar jamais impediu a ditadura do “politicamente correto”, responsável pela construção do ser hipócrita.

Com as notícias de sucessivos incêndios na Amazônia vinculadas pela imprensa por todo o mês de setembro, o mundo chegou ao ápice das manifestações de hipocrisia. Aliás, a Floresta Amazônica, desde a colonização da América, é alvo de infinitas falácias. Na colônia portuguesa, que mais tarde ganharia o nome de madeira, não havia inicialmente interesse metropolitano nas riquezas interioranas. O Pau-brasil era encontrado no litoral, e os índios, fascinados pela prática do escambo, mostravam-se aptos para a realização dessa tarefa. Como na ocasião imperava o mercantilismo, doutrina econômica que apregoava que a riqueza das nações deveria ser medida pela quantidade de ouro guardado em seus cofres, as notícias da existência de metais precisosos na terra brasilis promoveram a marcha rumo ao Oeste. Com as expedições das Entradas e Bandeiras, os portugueses enriqueceram ainda mais com o genocídio indígena e a desenfreada caça predatória, bem como o inevitável desmatamento para a construção das minas. Justificados pelas bênçãos da Cruz de Malta, os lucros foram tão exorbitantes, que a linha imaginária instituída pelo Tratado de Tordesilhas envergou significativamente, traçando os contornos embrionários das fronteiras de um país chamado Brasil.

A Amazônia de hoje continua sendo habitada por povos indígenas e seus descendentes, mas também por pessoas de cabelos crespos e lisos, e de todos os tons de pele, nacionais e estrangeiros, verdadeiros Schneiders da Silva. Nela encontram-se freiras e seringueiros, bandidos e mocinhos, gente muito pobre e muito rica, ora despossuídos expropriados, ora latifundiários bem-aventurados. Há quem carregue a droga e a marmita, quem cace e quem é caçado, quem mata e quem morre, e quem somente morre, muitas vezes pelas mãos de gente detentora de mais riquezas do que a floresta é capaz de produzir. E não se pode esquecer da presença de uma árvore chamada Dinizia Excelsa, também conhecida como Angelim Vermelho, eis a advertência feita pelo comercial exibido por uma emissora de televisão.

Não há como negar que a Amazônia, uma das maiores florestas do planeta, vem sendo criminosamente saqueada e destruída, gerando prejuízos irreversíveis ao meio ambiente. Também é notório o que costuma ocorrer com quem se coloca a frente dos movimentos de proteção das reservas naturais brasileiras, independentemente dos relatórios divulgados por organizações não-governamentais estrangeiras. O conhecimento empírico basta. A brutalidade que caracteriza a sociedade brasileira pode ser constatada a olho nú, tanto na zona rural quanto nos grandes centros urbanos, e seus efeitos atingem os indivíduos que nessa terra vivem (sobrevivem) de forma muito mais severa do que qualquer outro cidadão estrangeiro que se mostre indignado.

Entretanto, apesar da questão que envolve a região amazônica ser bastante antiga, o tom dos discursos daqueles que tomaram a dianteira em sua defesa roubou a cena nos últimos dias. A hipocrisia exibiu mais uma vez o seu lado irônico e perverso. Isso porque o indivíduo que se presta a levantar uma bandeira qualquer, seja contra ou em favor de alguma coisa, deve, de antemão, olhar para dentro de si mesmo, sob pena de parecer patético, ao menos diante de quem tenha a capacidade de perceber os pontos de contradição.

O primeiro aspecto que salta aos olhos está relacionado ao fato de se procurar desvincular o homem do meio ambiente, como se dele não fizesse parte. Alguns podem argumentar dizendo que é preservando a vegetação, e a pureza do ar e da água, que o homem estará cuidando da própria existência, bem como do seu bem-estar, fato que somente um indivíduo desprovido de inteligência seria capaz de discordar. Ocorre que, ao menos no Brasil, enquanto as pessoas estiverem agonizando nos corredores dos hospitais em razão da falta de atendimento médico e de remédios, por mais que se sensibilizem com as imagens das tartarugas lambuzadas de Óleo Diesel, ou da fumaça que sufoca as araras, o sofrimento delas ainda assim é muito maior. Estão com a perna apodrecendo por não terem tratamento adequado para o diabetes, ou urinando sangue graças aos tumores que se espalham pelo corpo na mesma velocidade em que o fogo se dissipa pela mata seca. A elas foi negado aquele mínimo de dignidade necessário para que também pudessem ter o privilégio de se preocuparem com as orquídeas Phalaenopsis. Esses indivíduos pertencem igualmente ao ecossistema, e os animais da floresta talvez sejam mais solidários às suas dores do que as autoridades do mundo inteiro. Quando somos capazes de chorar pelo mico-leão-dourado, ao mesmo tempo em que fechamos os olhos para as famílias que fazem a ceia na calçada com comida podre das lixeiras, todo debate político, social, jurídico e religioso perde inteiramente o objeto.

Também é estarrecedor ouvir que os danos ao meio ambiente se propagam devido a ausência de normas que regulem de forma mais específica às atividades que afetam o meio ambiente, bem como pelo fato de a legislação em vigor não ser rigorosa o bastante para reprimir crimes dessa natureza. Se tem uma coisa que o Brasil sabe produzir sistematicamente é lei, mesmo que sirva apenas para “inglês ver”. Ao mesmo tempo em que o Congresso Nacional ganha o status de pior legislador do universo, do tipo que coloca um parágrafo subsequente àquele que chamou de único, consegue a proeza de produzir mais leis do que qualquer outro. Tácito, político e historiador romano, tinha razão ao afirmar: corruptissima republica quae plurimae legis.

Algumas leis ambientais foram criadas tão-somente para estabelecer detalhes sobre cor, tamanho e peso das medalhas a serem dadas aos defensores da natureza. Estaria faltando regulamentar o quê? E quanto ao principal diploma legal no tocante ao tema, que é a Lei 9.605/1998, estão previstas, entre outras medidas, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas pelos danos causados ao meio ambiente; a desconsideração da pessoa jurídica caso tenha o patrimônio comprometido ao ponto de tornar inviável a reparação dos prejuízos causados; e o confisco das empresas que servirem, preponderantemente, como instrumentos de crimes ambientais. Quando a própria “pena de morte” para a empresa é admitida, que outra sanção poderia ser mais contundente?

Existem tantas normas penais previstas na lei em comento, que dos 82 artigos que a compõem, 69 deles são de natureza criminal, que, por sua vez, criam 34 tipos incriminadores: 6 contra a fauna; 14 contra a flora; 5 referentes à poluição; 4 em prejuízo do ordenamento urbano e do patrimônio cultural; e por fim, outros 5 que atentam contra a administração ambiental. Muitos não sabem, por exemplo, que é crime “destruir, danificar, lesar ou maltratar, por qualquer modo ou meio, plantas de ornamentação de logradouros públicos ou em propriedade privada alheia”, com pena cominada de detenção de três meses a um ano, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente, adimitindo-se ainda a modalidade culposa, cuja escala penal varia de um a seis meses (artigo 49 da Lei 9.605/1998). Portanto, é recomendável agir com muita cautela na hora de fazer uma baliza para estacionar o automóvel. Não sendo caso de aplicação do Princípio da Insificância, nem de medidas despenalizadoras, nem de substituição da pena privativa de liberdade por multa ou restritiva de direitos, os desatentos poderão integrar a terceira maior população carcerária do planeta.

E para as autoridades que representam Estados estrangeiros e organizações internacionais vale dizer que apesar de toda a tragédia que compromete a vida em solo brasileiro não isenta o resto do mundo da responsabilidade. Quando o assunto é crime ambiental, o banco dos réus é grande, havendo lugar para todos, e certamente o Brasil não irá figurar como peça principal do julgamento. Não foram os brasileiros os responsáveis pela escravidão e morte de cerca de cinquenta milhões de índios nas colônias da América; os donos das empresas produtoras dos agrotóxicos extramemente nocivos, proibidos nos próprios países que os fabricam; os criadores da guerra química mediante a utilização de gás mostarda, napalm, arsênico e gasolina gelatinosa; os contrutores dos mísseis de destruição em massa; os causadores de acidentes em usinas nucleares; nem os detonadores de bombas atômicas no fundo das praias parasidíacas.

Quanto aos demais homens bem-intencionados, para que seja possível um debate franco e salutar sobre a preservação do que resta da Amazônia, convém parar de se intoxicarem com a fumaça de nicotina e alcatrão, álcool, e outras drogas lícitas e ilícitas. Não pega bem, gera descrédito em relação ao assunto. Longe da hipocrisia, perceberão que penas mais severas servem exclusivamente para lotar ainda mais os presídios, e não são capazes de moldar o comportamento social; que o dedo em riste apontado para os culpados é válido para quem ainda não entendeu que quanto ao extermínio da espécie humana não há sequer um inocente; e que o Direito, se não for voltado para a felicidade do homem, não tem nenhuma utilidade.

 

Sergio Ricardo do Amaral Gurgel é advogado militante na área criminal desde 1994 e há mais de quinze anos vem ministrando aulas de Direito Penal e Direito Processual Penal para todas as carreiras jurídicas, nos principais cursos preparatórios do país, principalmente no Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais, Brasília, Mato Grosso e Pernambuco. É autor do “Manual de Processo Penal” (2ª edição) pela Impetus e de outros livros jurídicos.

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