Direito Constitucional
Execução da pena após 2º grau: STF caminha para uma monstruosidade
Sou favorável à execução (definitiva) da pena após dois graus de jurisdição, que examinem e reexaminam os fatos e as provas do processo por meio de juízes diferentes. A presunção de inocência, prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos, só garante essa situação até o julgamento em 2º grau. O mundo inteiro prende após decisão em dois graus de jurisdição.
Mas no Brasil isso só pode ser feito por Emenda Constitucional (que estamos defendendo no Parlamento), que defina o que se entende por coisa julgada (conceito dado pela Constituição, mas nunca explicado por ela). Não cabe ao Supremo, sob pena de ativismo judicial indevido, nem afirmar que se pode prender após 2º grau nem que não se pode prender depois desse momento. Essa decisão compete ao legislador, não ao Supremo.
Depois do voto de Rosa Weber (em 24/1/19), a tendência é a Corte, nos próximos dias, afirmar que não cabe mais prisão após decisão de 2º grau. Até 2009 sua jurisprudência dizia que era possível prender após 2º grau; de 2009 a 2016 passou a entender que não cabia; desde fevereiro de 2016 voltou a afirmar que é cabível tal prisão, por meio de execução provisória.
O tema está novamente na pauta da Corte, que está na iminência que praticar um dos maiores disparates de todos os tempos. Por sugestão do ministro Toffoli, a prisão seria possível após decisão do STJ, terceiro grau de jurisdição.
Esse posicionamento seria, do ponto de vista jurídico, escatológico, nauseante, excremental, coprológico, nojento, nauseabundo, asqueroso, repugnante e repulsivo. Não encontra a mínima base jurídica. Seria puro voluntarismo, porque o STJ não pode rever nem fatos nem provas. O campo da presunção de inocência está adstrito, de acordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos, a dois graus de jurisdição (não a três).
Aguardemos. Será o último prego no caixão da credibilidade da Corte Suprema.
Acompanhe nosso raciocínio
O STF protagonizou vários momentos interpretativos, em cima do mesmo texto constitucional (artigo 5º, LVII, da CF), que diz: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Lendo-se o dispositivo citado e outros correlatos sabe-se o seguinte: toda prisão é definitiva após o trânsito em julgado. Antes da coisa julgada, toda prisão é provisória (cautelar). É uma aberração falar em execução definitiva da pena antes do trânsito em julgado final da sentença.
Prisão provisória (flagrante, temporária ou preventiva) jamais pode ser decretada ou mantida sem motivo concreto justificador da privação da liberdade (decisão fundamentada de juiz). Tem que ter motivo concreto comprovado e convincente (por exemplo: réu ameaçando testemunhas, obstruindo a Justiça, destruindo provas etc.). Não importa o momento do processo: durante a investigação, durante a instrução processual, antes do 2º grau, após 2º grau, não interessa. Havendo motivo concreto o juiz pode sempre mandar prender antes do trânsito em julgado final da sentença condenatória. A prisão provisória fundamentada e justificada não ofende a presunção de inocência (jurisprudência pacífica nesse sentido).
Qual o problema do dispositivo constitucional citado (artigo 5º, LVII): nossa Constituição falou em trânsito em julgado, mas não definiu o que se entende por coisa julgada. Isso vem gerando uma enorme incerteza jurídica. E a verdade é que, apesar das polêmicas, a coisa julgada continua sem definição na nossa Carta Maior. Enquanto a Constituição nada diz, entende-se que coisa julgada acontece depois de esgotados todos os recursos em todas as instâncias recursais.
De acordo com nossa opinião, desde que se respeite a garantia da presunção de inocência (que é intangível), não há nenhum impedimento para que o legislador derivado reformador conceitue o instituto da coisa julgada. Aliás, ao contrário, tudo recomenda que isso seja feito o mais pronto possível, diante da balbúrdia gerada pelas várias interpretações do STF.
O conceito de coisa julgada, teoricamente, poderia vir por lei ordinária (como pretende a reforma Moro, por exemplo) ou por Emenda Constitucional. Mas é evidente que somente a segunda via confere segurança jurídica e paz social. Qualquer lei ordinária nesse sentido seria prontamente julgada inconstitucional pelo Supremo.
O conceito de coisa julgada só pode ser dado por Emenda Constitucional pelo seguinte: sempre que o legislador deliberar sobre a limitação ou conceituação de um direito fundamental previsto na Constituição, a restrição ou explicitação deve ser feita, prioritariamente ou exclusivamente (conforme a corrente de pensamento), por norma de igual hierarquia nomológica (Cézar Peluso).
Se a coisa julgada é uma garantia constitucional, parece muito evidente que a sede adequada para sua definição (ainda inexistente no texto Maior) seja a própria Constituição. Do contrário irão continuar os questionamentos em virtude da dissintonia hierárquica nomológica.
Se a Constituição não descreveu o que é coisa julgada, há uma lacuna nela que precisa ser aclarada. Não há nenhum impedimento para se aclarar o conteúdo de um direito constitucional, sempre que respeitado seu núcleo essencial (seu núcleo duro) assim como os direitos correlatos envolvidos.
Esse é o entendimento do STF, que vem acolhendo de forma temperada a teoria alemã do limite dos limites (Schranken-Schranken), sob a premissa de que não existe direito absoluto. Nem sequer o direito à vida é absoluto.
Na ADC nº 29/DF (que discutia a lei da ficha limpa), o tema do limite dos limites foi abordado de forma mais direta e específica:
“O princípio da proporcionalidade constitui um critério de aferição da constitucionalidade das restrições a direitos fundamentais. Trata- se de um parâmetro de identificação dos denominados limites dos limites (Schranken-Schranken) aos direitos fundamentais; um postulado de proteção de um núcleo essencial do direito, cujo conteúdo o legislador não pode atingir. Assegura-se uma margem de ação ao legislador, cujos limites, porém, não podem ser ultrapassados. O princípio da proporcionalidade permite aferir se tais limites foram transgredidos pelo legislador.”
Jamais o legislador ordinário reformador poderia abolir a garantia da coisa julgada. Direito fundamental individual não pode ser abolido, por se tratar de cláusula pétrea (CF, artigo 60, § 4º, inciso IV). Mas ele pode (e deve) ser explicado na própria Constituição.
Sem a definição constitucional do instituto, a doutrina e a jurisprudência se encarregaram de lhe dar um conteúdo. Elas afirmam que a coisa julgada acontece depois de esgotados todos os recursos cabíveis no ordenamento jurídico.
De outro lado, enquanto não acontece o trânsito em julgado, o réu continua presumido inocente. Presunção iuris tantum (admite prova em sentido contrário), que desaparece quando fatos e provas evidenciam a culpabilidade (responsabilidade) do agente. Liga-se a coisa julgada com a presunção da inocência.
Presunção de inocência
Há quatro sistemas no mundo para derrubar a presunção de inocência (e gerar a coisa julgada): (1) basta que o réu se declare culpado (esse é o sistema norte-americano do guilty or not guilty); (2) quando o réu se declara culpado e outras provas validadas pelo juiz evidenciam sua culpabilidade; (3) quando há decisão de segundo grau (a quase totalidade dos países ocidentais têm essa regra como padrão); (4) só depois de esgotados todos os recursos em todas as instâncias.
O sistema anglo-saxônico (da common law), com destaque para os Estados Unidos, segue o primeiro sistema (guilty or not guilty). Os países fora da tradição anglo-saxônica (civil law) que admitem o acordo penal entre as partes (entre autor do fato e Ministério Público – Itália, por exemplo, com o pentitismo) seguem o segundo sistema (declaração de culpa do réu + outras provas validadas pelo juiz).
Quando se trata de processo conflitivo (sem acordo entre as partes), a quase totalidade dos países do mundo ocidental segue o que vem escrito nas Convenções Internacionais (no nosso caso, Convenção Americana de Direitos Humanos, que exige dois graus de jurisdição). Ou seja, seguem o terceiro sistema, tido e reconhecido como civilizado inclusive pela Corte Europeia de Direitos Humanos.
E a Constituição brasileira? Segue o quarto sistema (talvez o único país do mundo que faça isso). Mas é uma anomalia exigir o esgotamento de todos os recursos para se executar a pena. Esse entendimento não concilia as garantias do réu com os direitos da sociedade (de uma Justiça eficaz). Fatos e provas analisados por dois graus de jurisdição ou por dois órgãos distintos da Corte Suprema já derrubam a presunção de inocência nos processos sem acordo penal. Isso está contemplado expressamente na Convenção Americana de Direitos Humanos (repita-se). Ou seja: o terceiro sistema (amplamente majoritário no mundo todo) liga a presunção de inocência à coisa julgada após duplo grau de jurisdição.
Jurisprudência do STF
Até 2009 a jurisprudência do STF permitia a execução provisória da pena antes da coisa julgada final, ou seja, após decisão de segundo grau.
De 2010 a 2016 passou a observar rigorosamente o sistema do esgotamento de todos os recursos (quatro graus de jurisdição, portanto, incluindo o STJ e o STF).
Claro que os réus com enriquecida assistência jurídica, muitas vezes prestada pela competente defensoria pública (de modo especial, a que atua nos tribunais), ingressavam competentemente com todos os recursos cabíveis, em todas as quatro instâncias, seja para discutir com denodo os seus direitos, seja para paralelamente protelar ao máximo a execução da pena (Pimenta Neves demorou 11 anos para iniciar a execução da sua pena por homicídio; Luiz Estevão ingressou com mais de 30 recursos nos tribunais e por ai vai).
Os Tribunais Superiores, complacentemente, aceitavam essa anômala situação (de morosidade indefinida) geradora de sensação de impunidade, que possui mais a cara de um privilégio que de um direito. Nem todos os réus contam com uma enriquecida assistência jurídica (pública ou privada).
Em fevereiro de 2016 (por iniciativa do ministro Teori Zavascki) o STF se rebelou contra tudo isso. Decidiu (por 7 votos contra 4 – HC 126.292) que a pena pode (deveria) ser executada provisória e imediatamente após a decisão de segundo grau (que seria suficiente para derrubar a presunção de inocência).
A Constituição diz uma coisa (prisão provisória precisa de fundamento específico) e o STF passou a decidir outra (os Tribunais de 2º grau podem mandar executar a pena provisoriamente, conforme cada caso). Os réus e seus advogados, em geral, nunca aceitaram esse “ativismo” judicial. O embate tornou-se inevitável. A confusão continua.
A insegurança jurídica se instalou definitivamente dentro do STF, que ainda se mantém dividido sobre o tema. Decisão em habeas corpus não obriga que a minoria siga a maioria. E a população continua estupefata com as decisões conflitantes dos ministros.
O tratamento desigual conferido a dois réus na mesma situação (Lula e José Dirceu, por exemplo) é gerador de muita indignação.
Celso de Mello, na linha do que decidem também Marco Aurélio, Lewandowsky e Gilmar Mendes, em 1/7/16 (HC 135.100), decidiu que o réu não pode cumprir imediatamente a pena depois do 2º grau, porque ele continua presumido inocente. Ele já tinha dito isso no julgamento de fevereiro de 2016 (foi um dos 4 votos contrários à maioria).
No momento do julgamento do habeas corpus impetrado em favor de Luiz Inácio Lula da Silva (abril/2018) o tema ganhou repercussão nacional (se tornou midiático). Por seis votos a cinco o STF denegou seu habeas corpus. Em seguida ele foi para a prisão e lá se encontra até hoje.
A maioria dos Ministros reafirmou o entendimento que é possível a execução provisória da pena imposta em condenação de segunda instância, ainda que pendente o efetivo trânsito em julgado do processo. Entendeu que isso não ofende o princípio constitucional da presunção de inocência, (ADCs 43 e 44 no HC 126.292/SP e no ARE 964.246, repercussão geral Tema 925).
Neste tema não há unanimidade
O direito requer, para ser observado e respeitado pela população, estabilidade e previsibilidade. Nosso direito (Constituição, leis e entendimento dos juízes) está se tornando cada dia mais instável e imprevisível. A insegurança jurídica no Brasil já atingiu níveis estratosféricos. Daí a queda nos índices de credibilidades das Cortes.
Isso constitui um dos motivos do nosso baixo crescimento econômico nas últimas três décadas (menos de 1,5%, ao ano). A insegurança jurídica afeta os investimentos. A receita fatal para a destruição ou fracasso dos países é composta de instabilidade econômica, política e jurídica.
Até quando vai perdurar essa desgastante situação? Enquanto o legislador ordinário reformador não disciplinar o conceito de coisa julgada, não teremos segurança jurídica nem paz social nesse assunto.
Proposta do ministro da Justiça Sérgio Moro (reforma penal de 2019)
O ministro Moro insiste no entendimento controvertido e nebuloso (do ponto de vista formal) do STF de 2016. Trabalha com a ideia de execução provisória da pena após decisão do segundo grau. Ademais: prevê isso por meio de lei ordinária. São duas ideias muito problemáticas.
Execução provisória da pena, sem a fundamentação concreta da sua necessidade, é impossível. Por que trabalhar com a ideia da execução provisória se podemos implantar a pena definitiva após o segundo grau?
E tudo seria feito por meio de lei ordinária. Aí o problema se agrava. A proposta do ministro Moro, assim, não resolve a questão. Não se apaga incêndio jogando gasolina na fogueira. Temos que desenvolver uma alternativa, porque é correta a prisão após o segundo grau (aliás, o mundo todo admite isso como algo civilizado).
Necessitamos definir o que se entende por coisa julgada na Constituição (na linha do que vem sinalizando os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio etc.). Não podemos mais protelar o enfrentamento do tema.
Proposta do deputado Alex Manente – Cidadania-SP (PEC 410/2018)
Artigo 1º – O inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
“Artigo 5º. ……………………………………………………………………..
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LVII – ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso. (NR)
A proposta do eminente deputado federal Alex Manente soluciona boa parte do problema. Aproveito para parabenizá-lo pela iniciativa. Define a coisa julgada após a “confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.
Mas nada diz sobre a natureza, a partir daí, do recurso especial para o STJ e do recurso extraordinário para o STF. A pergunta evidente que o interprete fará é a seguinte: em qual grau de recurso a sentença penal condenatória deve ser confirmada para se formar a coisa julgada?
Quem cuidou desse angustiante tema foi o ex-presidente do STF, Cezar Peluso, em 2011, dando aos recursos especial e extraordinário a natureza de ações rescisórias constitucionais. Esse é o caminho acertado.
Se o réu tiver seu recurso provido nos Tribunais Superiores, rescinde-se a coisa julgada e tudo isso sem prejuízo do habeas corpus que sempre pode ser manejado para impedir a execução de uma pena que tenha sido imposta de forma abusiva ou flagrantemente ilegal.
Casos escatológicos devem ser corrigidos imediatamente por habeas corpus. O erro judicial, às vezes acumulado em primeiro e segundo graus, não é tão incomum quanto parece.
Nossa proposta de Emenda Constitucional seria a seguinte:
Como sou favorável à prisão após 2º grau implantada por meio de Emenda Constitucional, que defina o que é coisa julgada, minha Emenda seria a seguinte:
As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do artigo 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:
Altera o inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal para prever que ninguém será considerado culpado até que os fatos e as provas do processo sejam analisados em dois graus de jurisdição. Os recursos cabíveis a partir da coisa julgada contam com natureza de ação rescisória.
Artigo 1º – O inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
“Artigo 5º. ……………………………………………………………………..
…………………………………………………………………………………..
LVII – ninguém será considerado culpado até que os fatos e as provas do processo sejam analisados em dois graus de jurisdição. No caso de competência originária do Supremo Tribunal Federal, deve-se assegurar a revisão dos fatos e das provas no mesmo tribunal (Turmas e Pleno). O recurso especial para a Superior Tribunal de Justiça bem como o extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, depois de formada a coisa julgada na esfera criminal, possuem natureza de ação rescisória. (NR)
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Artigo 2º – Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.
Luiz Flávio Gomes. Deputado Federal, criador do movimento de combate à corrupção, “Quero um Brasil Ético”. Jurista, doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri. Professor de Direito Penal e de Processo Penal no Brasil e no exterior. Atuou como agente de polícia, delegado, promotor de justiça, juiz de direito e advogado. Fundador da Rede LFG, democratizou o ensino jurídico no Brasil com a primeira rede tele presencial de educação da América Latina, vendida em 2008. Foi comentarista do Jornal da Cultura. Sempre solicitado pela imprensa, já deu entrevista em duas ocasiões para o Jô Soares, por quem foi chamado de “homem furacão”. É autor e coautor de mais de 60 livros na área jurídica, sendo “O jogo sujo da corrupção” sua mais nova publicação. Escreve para sites, jornais e revistas sobre temas da atualidade, especialmente sobre questões sociais e políticas, e seus desdobramentos jurídicos. É colunista pioneiro do Caderno Jurídico.