Direito Agrícola, Ambiental e Urbanístico
Função social da propriedade? Mas que história é essa?
Não é difícil encontrar um produtor rural reclamando do quanto ele “perde” de área para as tais Reservas Legais e Áreas de Proteção Permanente. Por que existem estas áreas, quais as suas funções? Para responder esta pergunta e entender os motivos que levaram ao Estado brasileiro definir em lei a obrigatoriedade desses espaços nas propriedades rurais, devemos fazer um retorno na história e relembrar a evolução do processo de formação do conceito atual de propriedade, especialmente no caso de imóveis rurais.
Com o fim do Império Romano, os povos até então dominados, passam por um processo de liberdade e recriação. Evidente que, após o domínio Romano, o ressurgimento desses povos e de suas fronteiras são bem distintos do que havia anteriormente ao Império. Esta individualização de povos e a falta de um poder central e com força militar é uma atmosfera para muita instabilidade e insegurança. Fato que determina um isolamento protetivo entre as comunidades. Com esse isolamento, as comunidades organizam-se entorno de algum senhor rico, capaz de propiciar proteção militar, e da estrutura da Igreja Católica, que, aproveitando-se da proteção dos romanos, cresceu por boa parte da Europa. Este período ficou conhecido como feudalismo.
Entretanto, após a recuperação de alguma estabilidade na Europa, o comércio internacional, em especial com Oriente, volta a ser uma preocupação. Para essa expansão comercial torna-se fundamental a proteção dos, agora bem estruturados, monarcas da Idade Média.
Este apoio ao comércio e o crescimento dos Estados em órbita a esses monarcas são o ambiente propício para centralização do poder e formação das monarquias absolutistas.
Com estes regimes, o direito à propriedade é bastante fragilizado, pois a interferência do Estado na vida das pessoas e nos seus bens é uma constante.
Esta posição do Estado monárquico e o crescimento dos comerciantes gerou uma tensão política e econômica interna aos Estados da Europa.
Conjuntamente a este fenômeno, também as ideias passaram por mudanças com o surgimento do pensamento liberal. Nesta concepção, o Estado passa a ter um papel bem menor na sociedade e os direitos dos indivíduos, independente de sua origem, devem ser respeitados igualmente.
Fruto deste pensamento liberal, o direito à propriedade passa a ser defendido como elemento essencial de uma sociedade equilibrada. E chegando ao extremo, os direitos do proprietário sobre seus bens seriam absolutos, podendo fazer e dispor da forma que quisesse.
Anteriormente, com uma população pequena e primitivas técnicas de cultivo, era comum a técnica de produzir em uma área e depois abandoná-la, passando a utilizar outro local para produzir. Essa área abandonada entrava em um processo de recuperação e poderia ser reintegrada à produção em uma outra ocasião.
Todavia, com o crescimento populacional, a forma de exploração fora intensifica e este recurso sofreu um desgaste, diminuindo sua capacidade produtiva. Nesta situação, gradativamente, os agricultores avançavam sobre novas áreas de plantio e a vegetação natural foi sendo retirada para dar lugar aos campos de cultivo. Com a concepção de propriedade absoluta, o Estado ficava impossibilitado de intervir nas formas de exploração que promoviam os proprietários. E, cada vez mais, evidenciava-se que esta forma abusiva de exploração promovia reflexos não somente aos proprietários, mas a toda sociedade.
Gradativamente, forma-se uma conscientização de que a propriedade não poderia mais ser absoluta e que o seu uso não poderia mais trazer reflexos negativos à sociedade. Ou seja, a propriedade é um direito, mas o seu uso deve conter-se nos limites dos direitos dos outros membros da sociedade. A essa restrição é possível denominar “uso com respeito à sociedade”, ou uso que tenha uma função benéfica à sociedade.
A própria Igreja Católica, com a Encíclica Mater et Magistra, escrita pelo Papa João XXIII, traz doutrina social sobre o tema ao afirmar que “o direito de propriedade privada sobre os bens, possui intrinsecamente uma função social”.
Especificamente no Brasil, esta nova concepção é incorporada ao nosso sistema legal na Lei número 4.504, de 30 de novembro de 1964, também denominada de Estatuto da Terra. Na normativa o conceito de função social da terra foi definido no artigo 2º, § 1º, com as seguintes características:
A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.
Percebam que a alínea “c” é contundente, pois a função social deve assegurar a conservação dos recursos naturais. No Código Florestal de 1965 esta função social fora incorporada diretamente no processo de aprovação da Reserva Legal na propriedade rural.
A Constituição de 1988 consagrou a função social da propriedade ao introduzir sua obrigatoriedade no artigo 5º, inciso XXIII, destacando-se que os direitos e obrigações desse artigo são considerados pétreos, ou seja, definitivos, somente podendo ser alterados em um novo processo constituinte original.
O Novo Código Florestal fez algumas alterações na forma desta proteção, mas Reserva Legal e Área de Proteção Permanente continuam como elementos essenciais na função social da propriedade.
A própria concepção de propriedade foi transformada nas duas últimas décadas devido à evolução do conceito de ética intergeracional. Nesta concepção, a obrigatoriedade da preservação não se deve somente a geração presente, mas também às vindouras.
Esta ética reposiciona a propriedade não mais como uma exclusividade do proprietário atual, mas sim como um bem pertencente à humanidade, independente da questão temporal. Portanto, os “donos atuais” são usuários, aos quais, são propiciados direitos especiais de exploração devido ao trabalho e aos recursos que investiram na propriedade para adquirir esses direitos e transformar o bem natural, especialmente o solo, em um fator de produção. A concepção não pode ser confundida com a socialista ou comunista, em que o Estado deteria ad aeternum os direitos sobre a terra.
A ética intergeracional visa proteger os próprios sucessores por direito, mas também a toda a sociedade que acaba sendo beneficiada por aquelas terras e seu uso de forma sustentável. Por tanto, que se pese os problemas individuais que surgem devido as regras ambientais brasileiras e às restrições pela função social das propriedades, o Brasil encontra-se no melhor caminho enquanto povo e em uma visão de longo prazo.
Atualmente, as nossas APPs são uma prova viva de que estamos no caminho certo, pois às recuperações destas áreas temos como resposta o fortalecimento de nossos recursos hídricos. Salientando que água é um dos fatores naturais que definirá as possibilidades de crescimento dos países em um futuro próximo.
Somos da opinião que as áreas de Reserva Legal merecem novos estudos e, provavelmente, outra legislação para viabilizar sua existência como área de proteção, mas também de produção. Entretanto, estamos no caminho certo e, agora, superado o século XX, passamos a visualizar que a política conservacionista do Brasil foi correta, incluindo a maior possibilidade de geração de renda.
A função social da propriedade e as obrigações de proteção ambiental fazem parte da história do Brasil e, graças a Deus, por estas leis!
Gostaram do artigo? Conto com a participação de vocês ilustres leitores. Escrevam para ingridzanella.advocacia@gmail.com. Na próxima semana iremos dissertar sobre condomínio multiproprietário. Assunto importante em!
Ingrid Cristine Zanella é advogada com atuação especializada em Direito Ambiental e Imobiliário.