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Jornal Caderno Jurídico

Direito Penal e Processual Penal

Aspectos polêmicos da proposta da nova lei de abuso de autoridade

20/8/2019 às 16h35 - Rodrigo Chemim
Divulgação Rodrigo Chemim “O novo tipo penal põe em risco os cargos de delegados, promotores e juízes, que têm, em cotidiano, um universo gigantesco de procedimentos criminais aos seus cuidados”, adverte o Procurador de Justiça, Rodrigo Chemim

No sentido técnico, é possível destacar três pontos do Projeto de Lei 7.596/2017, a chamada Lei de Abuso de Autoridade, que devem criar dificuldades para operacionalização da Justiça Criminal Brasileira: os artigos 27, 30 e 31.

O artigo 27 diz: “Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”. O que está sendo dito, em outras palavras, é: não é possível iniciar uma investigação se não houver um indício da prática de crime. Só que, no artigo 239 do Código de Processo Penal Brasileiro, existe um conceito de que indício é circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, permite induzir ou deduzir algo. Nos termos do artigo que está entrando em vigor, então, será pressuposto que se tenha uma prova para se iniciar uma investigação. Isso é quase um contrassenso. Como funciona hoje: normalmente, alguém que se sente vítima de um crime, procura a delegacia e faz uma notícia de um delito a partir da qual, em verificação rápida, o delegado decide instaurar o inquérito policial num juízo de valor de mera possibilidade. Isso significa dizer que as razões positivas que nos levam a acreditar que a notícia seja verdadeira estão em pé de igualdade com as razões negativas que nos levam a desconfiar dela. Hoje isso é o quanto basta para se iniciar uma investigação. Com a aprovação dessa lei, o delegado ficará numa situação delicada e terá que decidir se está suficientemente calçado para iniciar uma investigação, já que a lei diz que cometerá um crime, caso não tenha um indício como ponto de partida. A questão é que a investigação muitas vezes serve justamente para que se colete provas indiciárias. Assim, além do delegado correr risco de ser punido quando instaurar inquérito sem “indício”, quem ficará desprotegido serão as vítimas de crimes que procuram o Estado para noticiá-los.

A nova lei gerará impactos negativos, por exemplo, na proteção de mulheres em sede de violência doméstica, que procuram o Estado para noticiar que estão sendo ameaçadas de morte pelos seus companheiros. Sem o indício, só com a notícia do delito, não poderá ser feito nada. Outro exemplo, que inclusive mostra que a lei de abuso de autoridade pode gerar efeito contrário ao pretendido, é o de uma pessoa presa em flagrante que relata, em audiência de custódia ao juiz, que foi vítima de abuso pelos policiais por ocasião de sua prisão. Esse relato, hoje, basta para iniciar uma investigação em torno da notícia. Com a nova lei, ele cai no vazio se não vier acompanhado de um indício. Então, a lei apresenta um tipo penal que vai gerar uma espécie de paradoxo: só se pode iniciar uma investigação se já houver uma prova, só que muitas vezes se depende da investigação para se coletar tal prova. Como fica? Esse é, portanto, o primeiro problema técnico a se encarar.

O artigo 30 segue uma mesma linha e, de certa forma, se sobrepõe e repete o teor do artigo 27, colocando o seguinte: “É crime dar início ou proceder a persecução penal, civil ou administrativa, sem justa causa fundamentada ou contra quem se sabe inocente”. “Justa causa”, em processo penal, é um conceito técnico que dogmaticamente significa avaliar se temos um conjunto de elementos probatórios preliminares que sustentem um fato que se vai imputar ao réu numa denúncia. “Denúncia”, por sua vez, é petição inicial que materializa o exercício da “ação penal” promovida pelo Ministério Público e que dará início um “processo”. Já a expressão “persecução penal”, que aparece no tipo penal criado agora, é um conceito mais amplo, englobando tanto a investigação quanto o exercício da ação e o respectivo processo. Aqui se vê uma bagunça técnica do legislador. Ele está exigindo justa causa para que se inicie uma “persecução penal” e não uma “ação penal” que daria início a um “processo”. Então, agora seria preciso ter justa causa para iniciar a investigação? É uma imprecisão técnica assustadora, que vai gerar uma série de problemas de interpretação. Talvez o Judiciário, debruçando-se sobre isso, possa, amanhã ou depois, dar um direcionamento interpretativo coerente. Mas nós não podemos fazer vista grossa à ideia de que estará vigente um tipo penal que colocará em xeque a possibilidade de se iniciar uma investigação “sem justa causa”, sendo que a investigação serve justamente para que se obtenha a justa causa. Então cria um paradoxo de novo.

Percebemos que a lei é única e exclusivamente voltada para Polícia, Ministério Público e Judiciário, não havendo sequer uma figura penal que se encaixe em possíveis abusos da classe política. Única conclusão a que podemos chegar é que ela não pode ser sancionada na íntegra.

Outro artigo é o 31 que diz que: “Passa a ser crime estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a, em prejuízo do investigado ou fiscalizado”. Como assim “estender injustificadamente a investigação”? A lei prevê prazos de controle da investigação de 30 em 30 dias, permitindo a renovação do prazo sempre que o caso for considerado de “difícil elucidação” e o investigado estiver solto, mas também prevê prazos prescricionais para o exercício de uma pretensão punitiva. Enquanto não estiver prescrito um crime pode seguir sendo investigado. Existe uma tabela no Código Penal que nos diz que temos um tempo para investigar, que é o tempo da prescrição que é contado da data do crime até o recebimento da denúncia, ocasião em que ele se renova. Qualquer investigação que vá além do tempo da prescrição implicaria na extinção da punibilidade. Um habeas corpus de meia página faz com que se tranque uma investigação que transcenda o prazo prescricional. A lei parece voltada para a renovação dos prazos de 30 dias em casos que não se consiga obter os dados necessários ao exercício da ação penal. Sucede que esses prazos sempre puderam ser renovados quando ainda não estão preenchidas as condições da ação (notadamente a justa causa) ou ainda não se possuem os elementos necessários ao preenchimento dos pressupostos de validade da denúncia (identificação do acusado e dados que permitam descrever o fato com todas as suas circunstâncias). Agora está sendo exigida uma justificativa adicional em termo vago. O que é estender injustificadamente? Quer dizer que a investigação não pode seguir mesmo antes de esgotado o prazo prescricional e mesmo quando ainda não se tenham as condições da ação e pressupostos de validade da denúncia? O quanto de justificativa será necessário para dar continuidade à investigação? Hoje basta que não se tenha as condições da ação ou as informações necessárias para preencher os pressupostos de validade da denúncia para que seja possível ainda seguir investigando. O que se interpretará a partir daqui?

E mais do que isso. É preciso compreender a realidade da Justiça Criminal brasileira, desde sempre sucateada. O novo tipo penal põe em risco os cargos de delegados, promotores e juízes, que têm, em cotidiano, um universo gigantesco de procedimentos criminais aos seus cuidados. A qualquer um que trabalhe na Justiça Criminal é de conhecimento que a estrutura não dá – nunca deu – conta do volume de serviço. A nova lei exige que se analise investigação por investigação e se justifique se teria ou não uma razão adicional para prorrogá-la passados 30 dias, para além do que dizem os prazos prescricionais hoje. É possível imaginar que esteja gerando certo desespero aos delegados de polícia porque, como dito, há um sucateamento generalizado das polícias civis, e isso é crônico no Brasil. No estado do Paraná, por exemplo, dos 399 municípios, 270 não têm um Delegado de Polícia, o que significa dizer que um delegado está atendendo quatro, cinco, seis, até treze (!) municípios ao mesmo tempo. Dos 780 cargos de delegado de polícia criados por lei no Paraná apenas 392 estão preenchidos e não há previsão de novas contratações. De acordo com dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública do Paraná, só em 2018 foram formalizadas notícias crime em 1.183.265 de novos casos. Isso dá uma média de 3.018 novos inquéritos policiais a cada ano por delegado. Sim, não é possível esquecer dos casos de anos anteriores. E isso sempre foi assim desde quando se criou a primeira polícia no Brasil em 1808 com Dom João VI e seguirá sendo. Uma sobrecarga de trabalho absurda, gigantesca, sendo humanamente impossível ao delegado conseguir fazer essa análise individualizada dos inquéritos policiais, porque está cuidando de 3, 4, 5 mil inquéritos, com prazos formais de encerramento de 30 dias, onde ele pediria renovação por mais 30. Quer dizer, para pedir a renovação por mais 30, ele teria que se debruçar sobre 4 ou 5 mil inquéritos policiais em 30 dias e dizer, em cada um deles, porque ele entende que, justificadamente, é necessário renovar por mais 30, sob pena de, não fazendo, cometer um crime. Se forem 4 mil inquéritos sobre seus cuidados, dá uma média de 133 inquéritos analisados e justificados os pedidos de renovação por dia, isso se ele não folgar aos sábados, domingos ou feriados. E não tirar férias. Ou seja, a nova lei vai fazer com que praticamente todos os delegados de polícia do país, assim que aprovada a lei, passados 30 dias, corram o risco de incidir nessa prática penal e o mesmo pode ser dito dos promotores de Justiça e juízes que concordariam com a renovação por mais 30 dias sem a necessária justificativa pormenorizada. A menos que eles não façam outra coisa a não ser ficar justificando porque não foi possível encerrar em 30 dias ou se construa uma interpretação que os isente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa. Mas, até lá, quem vai seguir investigando e se despreocupar com as justificativas e se arriscar primeiro? E mais: quem vai investigar já que não haverá tempo para outra coisa que não ficar justificando o não encerramento das investigações?

Então, fica óbvio que esse projeto de lei nitidamente é direcionado a punir juízes, promotores e delegados. No início da lei, até pode haver menção de que os parlamentares também seriam atingidos, mas, lendo a lei com maior atenção, é possível constatar que não há nenhum tipo específico de punição direcionada às condutas de parlamentares. Neste sentido, a lei aprovada agora no Congresso Nacional, e que ainda precisa ser sancionada, é pior do que a que está vigorando, a Lei 4898/65. Há nesta última um dispositivo voltado a penalizar quem atente contra o exercício do voto. Na nova lei, isso deixa de ser crime. A conduta de um político que visa cercear alguém de votar em um candidato da oposição, por exemplo, que com a Lei 4898 é crime, deixa de ser com a nova lei. Aspectos como esse do texto do Projeto 7.596 evidenciam que a preocupação em punir juízes, promotores e delegados foi tão acentuada que quem o redigiu acabou esquecendo a possibilidade de que políticos também cometem crimes de abuso de autoridade.

Ninguém é contra a necessidade de uma atualização da lei de abuso de autoridade. Alguns tipos penais criados até são interessantes e importantes. Mas quando percebemos que a lei é única e exclusivamente voltada para Polícia, Ministério Público e Judiciário, não havendo sequer uma figura penal que se encaixe em possíveis abusos da classe política, a única conclusão a que podemos chegar é que ela não pode ser sancionada na íntegra. Uma lei aprovada a toque de caixa, na calada da noite, sem votação nominal, aproveitando uma situação de momento episódico, em que o congresso se sentia livre, sem muita pressão para votar, é sintomático do momento que estamos vivendo. Esse projeto precisa, portanto, ser rediscutido pela sociedade, para que possamos, de fato, aperfeiçoar a punição ao abuso de autoridade.

 

Rodrigo Régnier Chemim Guimarães. Procurador de Justiça, professor do Unicuritiba e da FAE, doutor em Direito de Estado pela UFPR.

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