Política
Sete anotações sobre as palestras de Deltan
A quem interessa expor a vida privada de um Procurador da República? A quem interessa desmoralizar a atuação do Estado contra o crime? A quem interessa tornar a vida privada de servidores públicos devassável? A forma como este caso está ocorrendo e sendo tratado é inaceitável! É esse o país onde queremos viver?
1. Introdução: não à polarização
Esperamos que todos leiam esse texto sem a cansativa e equivocada polarização de “contra” ou “a favor” de X ou Y, de ser de “direita” ou “esquerda”. Somos operadores do Direito e queremos discutir os temas abaixo de forma serena e em busca de consensos.
2. O país onde você quer viver
Você pode gostar ou não do Deltan. Ou da Lava Jato. Isso é um direito seu. O que vamos falar aqui não tem nada a ver com eventual amor, ódio ou indiferença a X ou Y. Vamos falar sobre o país onde você quer viver.
Acreditamos que você quer viver em um país onde as pessoas têm direito à privacidade e no qual ninguém pode produzir ou usar provas ilícitas. Um país onde o crime é combatido, o que inclui combater a produção e o uso de provas ilícitas.
Você pode detestar o Deltan, mas, deteste-o ou não, crendo que também deveria detestar provas ilícitas. Nenhum cidadão deve ter sua privacidade invadida. Se este cidadão é um servidor público que atua contra o crime organizado, um ataque a ele é o mesmo que um ataque à própria sociedade.
Reparem: não estamos mais falando de discutir se um juiz é imparcial ou não, ou de um processo judicial rumoroso. Chegamos a um novo patamar e nem todos perceberam: estamos vendo supostas conversas privadas sendo expostas publicamente. Estamos falando de invadir um celular e pegar supostas conversas de cidadãos (entre eles um membro do Ministério Público) sobre assuntos pessoais.
Você pode ter nojo do Deltan, mas deveria também ter nojo de uma sociedade onde as pessoas podem ser invadidas e massacradas. Qualquer pessoa.
Em qualquer país decente as pessoas têm direito à privacidade e as provas ilícitas são inaceitáveis. Isso está muito além de Deltan e da Lava Jato.
Hoje você se diverte com a privacidade alheia, amanhã será a sua. E, se é um servidor público, fica o alerta: quem vai querer combater o crime e ficar exposto a ser atacado em sua privacidade? Este é o país que queremos?
3. Sobre palestras
Fazer palestras não é crime nem é moralmente errado. Receber por elas também não. Mesmo assim, a forma como o Intercept e a Folha de S. Paulo estão atacando um cidadão e uma autoridade que combate o crime é parcial e desonesta.
A maior parte dos ganhos de Deltan com palestras foi doada para instituições de caridade. E os valores estão declarados em seu imposto de renda. Se ele ficar com toda ou parte da remuneração isto não é errado. Discutir quanto se vai cobrar também não é errado. Não há nada de errado, a não ser termos acesso a conversas particulares de concidadãos. Ainda sobre palestras, vale lembrar que vários ministros e parlamentares as fazem. Não há nada demais nisso.
Sobre preço das palestras, é simples: o preço tem relação com a visibilidade do palestrante e do tema, não há nada demais nisso.
Sobre montar empresa para gerenciar palestras, igualmente não há nada demais nisso. Aliás, montar uma empresa para gerenciar palestras apenas reforça a transparência. Enfim, tudo o que está sendo vendido como algo errado ou antiético são condutas normais, lícitas e praticadas por jornalistas, servidores públicos, professores, escritores, etc.
A única coisa diferente no caso das palestras do Deltan é a seguinte: de todos os palestrantes que conhecemos, é o que mais direciona seus ganhos para caridade/ instituições filantrópicas.
4. Provas ilícitas
A Constituição (artigo 5º, LVI) diz que provas ilícitas não são admitidas no processo. Ora, se nem mesmo o Estado pode usá-las, que dirá particulares. Produto de crime não pode ser usado, cabendo sim a sua apreensão.
Será que jornalistas poderiam usar provas ilícitas para buscar a verdade? Será que jornalistas têm mais direitos que as autoridades públicas? Será que jornalistas podem invadir a privacidade das pessoas? Podem usar produto de crime sem qualquer limite legal ou ético?
Vejam bem: se aos jornalistas for permitido usar provas ilícitas, estaremos abrindo uma estrada por onde o crime poderá passar incólume.
Quem quiser produzir e usar provas ilícitas bastará se valer de um jornalista! Isso é um absurdo. Pior: quem produz a prova ilícita estará protegido pelo sigilo da fonte.
É esse o país onde queremos viver?
O caso do Intercept é ainda mais grave, pois quem o comanda já declarou publicamente que não irá apresentar o material (as provas) ao Judiciário. Isso torna impossível qualquer análise pericial ou validação da prova. Pior ainda: já há declaração de que o conteúdo foi editado e elementos veementes mostrando que há erros graves (veja o caso da citação da Procuradora Monique Cheker).
5. Precedente?
O caso é ainda mais desafiador, pois traz à memória as ligações entre Dilma e Lula, quando tivemos prova produzida a partir das formalidades legais e submetida às partes e ao Judiciário como um todo.
Há discussões, no caso citado, a respeito do prazo das escutas e sua publicização. Sobre este outro caso, só há dois caminhos:
a) você entende que são hipóteses distintas, que lá foi legal e agora não foi, e será contra o que estão fazendo agora ou;
b) você considera que são casos semelhantes, e, então, por questão de coerência, também será contra o que estão fazendo agora.
O que queremos frisar é isso: ninguém que queira agir com bom senso aplaudirá o uso de material obtido de modo criminoso, de forma parcial e alheia ao Judiciário. Menos ainda se aplaudirá a invasão de privacidade de qualquer cidadão, ainda mais daqueles que estão servindo ao país.
6. Prova ilícita para defesa
Uma prova ilícita pode excepcionalmente ser usada para provar que algum crime não foi cometido, o que não é o caso, já que as conversas, ainda que verdadeiras, não se referem a crimes eventualmente cometidos por terceiros.
Divulgar conversas sobre palestras não atinge nenhuma acusação de fato criminoso de terceiros. É pura exposição com o fim de atacar servidores públicos. É pura aplicação de uma cultura onde qualquer cidadão pode perder seu direito à privacidade quando algum jornalista, ou alguém usando um jornalista, quiser atacar reputações.
Não é este o país onde você quer morar.
7. Conclusão: a quem interessa X o que interessa
A quem interessa expor a vida privada de um Procurador da República?
A quem interessa desmoralizar a atuação do Estado contra o crime?
A quem interessa tornar a vida privada de servidores públicos devassável?
A forma como este caso está ocorrendo e sendo tratado é inaceitável.
Esperamos que reparem que entramos no campo de pegar mensagens privadas sobre assuntos privados de cidadãos e expô-las publicamente. Discutir sobre palestras não é crime e não é assunto que justifique exposição pública, salvo se a intenção é assassinar reputações ou desqualificar agentes públicos.
Isso tem que ser repudiado. Não tem a ver com Deltan ou seus PowerPoints: tem a ver com o país onde queremos viver.
Porém, só para constar, como palestrantes reconhecidos e experientes, informamos: não há nada de diferente nas supostas conversas expostas. A única coisa fora do comum, repetimos, é que Deltan doa a maior parte do que recebe e usa outra parte para investir em algo que acredita: combater o crime. Se erra ou acerta ao combater o crime, isso não justifica alguém expor sua privacidade de forma ilícita. Se você não gosta do Deltan, vale lembrar: esse princípio também protege você.
Finalmente, assistimos a uma palestra aberta de Deltan, ao lado de Fernando Gabeira, para a Editora Sextante. Seu tema foi como combater a corrupção. Ótima palestra. Recomendamos que você, mesmo que não goste da Lava Jato, assista. Afinal, a corrupção é ruim para todos.
No mais, quando pensar no caso, não esqueça: em que tipo de país você quer viver?
William Douglas é juiz federal no Rio de Janeiro, escritor e professor universitário.
Rogério Greco é procurador de justiça em Minas Gerais, pós-doutor, doutor, mestre, escritor e professor de Direito Penal.