Concursos
Ilegalidade do ato administrativo e a banca examinadora
Este artigo apresenta uma visão geral acerca da sindicabilidade do ato administrativo em concursos públicos, baseado em julgamentos dos Tribunais Superiores, sob a exegese do que decidido em sede de Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 632.853 – tema 485 do STF, com ênfase na ilegalidade proveniente de erro grosseiro. Vamos lá!
A eventual extrapolação da discricionariedade administrativa por parte da banca examinadora gera o direito-dever constitucional do Poder Judiciário corrigir a ilegalidade, anulando o ato administrativo ilegal. Portanto, resta-nos definir o que seria ato ilegal. Então vamos para a segunda parte deste artigo. Relembrando que a primeira publicamos em 12/12/2018 na versão online deste importante jornal jurídico (leia http://cadernojuridico.com.br/artigo/187/Sindicabilidade-do-ato-administrativo-em-provas-de-concurso-publico).
Abstratamente é simples: trata-se de ato que fere a lei. Mas e nos casos concretos? O que pode efetivamente ser pensado como ilegalidade do ato administrativo?
Há diversas formas de um ato ser considerado ilegal quando da elaboração e correção de questões em concurso.
Tal conceituação é fundamental, porque, no que se refere aos atos exarados pela banca examinadora, o Judiciário possui âmbito de atuação mais restrito do que outros atos administrativos, por força do que decidido no RE 632.853.
Entretanto, a atuação judicial deve sempre existir, principalmente para coibir possíveis fraudes, onde aquele candidato melhor preparado, que estudou diversos normativos, doutrinas das mais variadas fontes, jurisprudências contemporâneas, etc., não pode, em hipótese alguma, ser prejudicado em detrimento daquele que assinou resposta efetivamente “errada”, mas que foi considerada “correta” por falha na motivação do ato administrativo.
Frisa-se que neste caso a administração não pode proteger-se sob o alegado manto da discricionariedade, uma vez que seus atos, mesmo quando discricionários, devem ser amparados na Lei e no Direito.
Dentro desse aspecto, de modo a conceituar a ilegalidade em concurso público, fundamental analisar o que decido no tema 485 do STF, sob três perspectivas:
Cobrança de questão fora do disposto no edital
Quando existirem questões cobrando matéria não exigida no edital, o Poder Judiciário, por óbvio, deve agir. Esta é a interpretação rasa e literal do RE 632.853 do STF, não havendo maiores questionamentos.
Existência de assertiva com divergência doutrinária
Este é um dos pontos onde surgem fundamentados questionamentos.
Quando existirem duas ou mais respostas corretas em determinada área, seja pela lógica, seja por parecer de profissionais renomados, seja pela existência de reiteradas decisões judiciais, a banca examinadora pode exigir que o candidato assinale uma resposta só, desde que oriente o mesmo sobre qual linha deva seguir.
Tal orientação deve se dar de forma objetiva e clara, preferencialmente no edital do concurso.
Nestes casos, havendo a presença da boa-fé objetiva, o Poder Judiciário não deve agir porque, mesmo existindo várias respostas para a assertiva, o administrador foi claro ao exigir este ou aquele posicionamento. Não há, portanto, ilegalidade.
Caso a banca exija determinado posicionamento doutrinário em detrimento de outro, sem embasar a exigência no edital, ou no corpo da prova, o candidato terá o direito de obter a pontuação se responder com fundamento em qualquer posicionamento devidamente fundamentado, sob pena de não haver qualquer parâmetro de atuação, onde a prova se aproximará de um jogo de adivinhação.
Dentro desses aspectos, a boa-fé objetiva é instituto norteador da legítima atuação da banca examinadora, devendo estar sempre presente.
Erro grosseiro, caracterizador de ilegalidade
Aqui reside o maior problema encontrado na interpretação do que decidido no tema 485 do STF, o qual pretendemos sanar com a explanação dos motivos, todos embasados e comprovados por decisões recentes, provenientes dos Tribunais Regionais Federais e das Cortes Superiores.
Pois bem. Se fizéssemos uma interpretação rasa e literal (exata) do que decidido pelo STF no julgamento do RE 632.853, em 23/04/2015, chegaríamos a conclusão que erros grosseiros cometidos pela banca não poderiam ser corrigidos pelo Judiciário, situação que vai ao encontro do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição, assim definido no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Na realidade, a redação do tema 485 do STF impede que o Judiciário adentre sobre a discricionariedade administrativa da banca, dada a soberania da mesma.
Entretanto, há permissão da atuação Judiciário quando a banca exigir questões fora do edital. Ocorre que a atuação do Judiciário não pode se limitar a esse único aspecto.
Demais ilegalidades presentes no concurso devem ser sanadas pelo Judiciário, sob pena de um processo de seleção criterioso e legal tornar-se uma forma de aparelhamento do Estado por candidatos mal preparados, seja devido a negligência da administração pública ao elaborar um certame, seja através do dolo de um administrador com más intenções, aparelhando o Estado com candidatos selecionados por concursos fraudulentos.
Neste artigo, portanto, comprovaremos que a atuação do Judiciário em concurso público vai além da análise de congruência da matéria exigida no edital com a questão em si. Erros grosseiros, perceptíveis à primeira vista, configuram ilegalidade, apta a legitimar a atuação Judiciário.
Tal entendimento é justo, legítimo e legal.
Legal, porque o ato administrativo ilegal deve ser anulado. Observe-se que o artigo 5º, inciso II da Constituição Federal dispõe que só a lei obriga, ou seja, o ato administrativo, para obrigar, deve decorrer diretamente da lei. Some-se a este enunciado constitucional o disposto no artigo 2º da lei 9784/99, que assim dispõe:
“Artigo 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.”
Legítimo, porque o Judiciário tem a competência constitucional de sanar ilegalidades levadas a ele. O artigo 5º, inciso XXXV da Constituição, c/c os princípios norteadores da administração pública elencados no caput do artigo 37º, norteiam a legitimidade do ato.
Ou seja, é “a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário.”5
Justo porque, sendo o concurso público meio para selecionar o candidato melhor preparado, questões devem ser aplicadas com objetividade e com técnica apurada, de modo a efetivamente medir o conhecimento daquele candidato apto a exercer o ofício.
Na parte final do artigo dissertaremos sobre o posicionamento dos tribunais interpretando o RE 632.853 (incluiremos as decisões) e a configuração de ilegalidade quando há erro grosseiro.
Felipe Cesar Michna é Procurador Federal da AGU (Advocacia-Geral da União), especialista em Direito Público e pós-graduado em Direito e Processo Tributário.
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5. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo, Editora Atlas, 2012.p.203