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Jornal Caderno Jurídico

Psicologia Forense

O significado da tatuagem em ambiente carcerário. A feição do EU no corpo

16/2/2017 às 22h51 | Atualizado em 12/4/2019 às 20h06 - Bárbara Brunini
Divulgação Bárbara Brunini “Possuir marca permanente significa assumir algo que é visto com desconfiança, certo temor e alguns preconceitos”, explica a psicóloga Bárbara Brunini

A importância do conhecimento das representações corporais por parte dos profissionais que atuam direta ou indiretamente com os sujeitos apenados, como também sobre o significado das tatuagens no submundo do crime, pode se apresentar como dado de interpretação e informação já que conota uma linguagem codificada, onde se traduz em sinais de poder, comando, subordinação, tipificação de delitos e seus diversos significados.

A leitura dos signos adotados nos corpos no interior das instituições carcerárias possuem múltiplas representações, classificação dos presos, segundo antecedentes criminais, características de conduta, orientação à individualização da execução penal, codificadas por sinais, palavras ou marcas, servindo como código que manifesta recados e ou revoltas.

A tatuagem é uma técnica utilizada desde a pré-história (GILBERT, 2000) e disseminada entre culturas diferentes de todos os continentes, com um uso bastante variado. Podendo ser analisada como a construção de identidades sociais e possuindo conotação de marca permanente é vista como um locus privilegiado na construção de identidades também permanentes. Sob o enfoque de alguns teóricos, podemos identificar o uso de tatuagens não com um processo de construção de identidades, mas de subjetividades, observando também a construção de um projeto corporal e seus significados pessoais e sociais.

A relação entre o uso de tatuagens a sujeitos marginalizados é ainda costumeira na contemporaneidade, contudo, não se trata mais de uma marginalização em termos de criminalidade, e sim em termos de exclusão social.

A esse tipo de marcação corporal são delineados diferentes motivos e formas de manifestações ou militâncias, sendo entre elas o embelezamento corporal, a proteção mística, a mudança de status, a expressão dos sentimentos, a percepção de uma maior ou menor autonomia pessoal frente à família, ao Estado e ao mercado de trabalho.

Alguns grupos foram fortemente associados à tatuagem e esta associação prolongou-se até a contemporaneidade. O primeiro grupo a ser tratado deve ser o dos marinheiros, já que foram eles o motor deste renascimento adotando o adorno como parte de sua cultura, fossem comandantes ou pesquisadores, mercenários ou membros da Marinha Real inglesa e operava como sinal de masculinidade ou de passagem de rito, geralmente seguido da iniciação sexual. Talvez tenha sido esta proximidade entre o universo naval e a prostituição que tenha disseminado a prática entre meretrizes, citando como descreveu Steward (1990) mulheres “decentes” não se tatuavam, apenas prostitutas e lésbicas. Para certos maridos, amantes ou namorados, a tatuagem era um elemento erótico, não apenas na sua qualidade de jura de amor, mas como um fetiche.

Todavia, o grupo mais fortemente associado à tatuagem foi o dos criminosos, principalmente depois dos pensamentos de Lombroso (1991) quando estes signos começaram a ser identificados como sinal de criminalidade, apesar de ser notória na bibliografia presente que a maior parte dos criminosos se tatua na prisão e não antes dela.

No caso dos condenados, a identidade marcada pela tatuagem é utilizada também à formulação de uma hierarquia construída na instituição penal, oferecendo a certos criminosos maior ou menor status, simbolizando fonte de orgulho e pertencimento corporativo.

Este histórico nos leva a uma reflexão sobre o papel do corpo na resistência a sistemas policiais e de exercício de autoridade. A tatuagem atingiu grupos cujo isolamento relativo é maior, grupos cujas redes de sociabilidade se formam dentro do próprio grupo, e não em outras esferas da sociedade e, fundamentalmente, grupos sob estreita vigilância social, sob um controle rígido, como ocorre na instituição carcerária.

A marcação desse corpo pode ser voluntária, uma forma de expressar o que Benson (2000) chamou de posse de si: o corpo se torna a única propriedade do sujeito e seu bem mais precioso, estreitamente vinculado à própria noção de individualidade, ou à noção de defesa ou ataque. A posse de si frente a uma instituição ou situação em que a individualidade é posta em xeque por mecanismos de controle e/ou isolamento como os de prisioneiros do sistema penitenciário, sugestionam a construção de redes internas de sociabilidade e de afastamento do mundo exterior em resposta da punição em consequência do ato delituoso.

Ao mesmo tempo, o controle exercido pelo aparato policial sob estes sujeitos é um controle sobre seus corpos, afirmação esta apresentada nas obras de Foucault (1997), e que representa a expressão de uma resistência, de igual maneira, por meio do corpo, sendo a tatuagem é uma resposta pessoal, na forma de uma resistência, a situações de controle sobre o corpo, sobre a identidade, frente aos grupos sociais onde o sujeito está inserido como também enquanto referencia os laços familiares e íntimos prejudicados neste período de encarceramento. Assim visualizada, a tatuagem não seria consequência desta marginalização, mas da estrutura de funcionamento de distintos grupos, em termos de controle, corporalidade e identidade, onde o preconceito contra os tatuados ou a tatuagem é visualizada como um discurso que encobre certa estrutura.

Esta resistência parece obedecer ao seguinte modelo dialético: o controle dos sujeitos significa um controle dos corpos, conforme indicou Foucault (1997); a resistência a este controle se dá, por sua vez, também por meio do corpo o qual quando controlado reivindica o poder de seu próprio corpo, como uma forma de reivindicar o direito sobre sua própria vida.

A tatuagem se apresentaria como um tipo de incorporação (ALMEIDA, 1996), na medida em que se tornaria uma experiência corporal que traduz uma situação que não é conscientemente traduzida a não ser pela própria experiência física. A mesma expressão no corpo resultante da tatuagem poderá ser realizada também contra a vontade do sujeito, como forma de punição, identificação ou marcação do grupo pelo crime cometido e periculosidade daquele sujeito, uma vigilância e eventualmente sob algum estigma (GOFFMAN, 1975) ou regime disciplinar. Esta marca corporal punitiva se mostra enquanto conduta social desde a Grécia Clássica, a qual marcava os criminosos com stigma, palavra utilizada simultaneamente para marcação por ferro quente (branding) e tatuagem, mas que manteve o significado de marca negativa e por possuir função de informar visualmente a condição de seu portador e o tipo de delito cometido, manteve assim o seu viés punitivo.

 

Uma hierarquia construída na cadeia

No caso dos condenados, a identidade marcada pela tatuagem é utilizada também para a formulação de uma hierarquia construída na instituição penal, oferecendo a certos criminosos maior ou menor status, simbolizando aqui fonte de orgulho e pertencimento corporativo.

Existe, por parte do apenado e do egresso, dificuldade em lidar com esse corpo marcado e com seus significados, já que se trata de um código intramuros, o qual, por determinado tempo, foi respeitado e seguido.

Concordamos que as marcas punitivas descritas foram impostas sobre os sujeitos, sendo a pele considerada zona de fronteira entre o Eu e o mundo social e pensada como envolvendo o Eu, uma membrana que protege (ANZIEU, 1989 apud GELL, 1993), mas pode também lacrar, no sentido de um não contato com o mundo social e um fechamento do Eu em si mesmo.

A análise de Foucault (1997) aponta claramente para esta tensão inscrita no corpo, pois ele é o limite entre o Eu (individual) e o Mundo (social). Neste sujeito de corpo, a pele se apresenta como o limite com contato externo o qual realiza a conexão entre o interno (do indivíduo) e o externo (do mundo).

Possuir esta marca permanente seria também assumir algo que é visto com desconfiança, certo temor e alguns preconceitos, sendo esta companheira do sujeito em seu devir de retorno à comunidade e reestabelecimento de sua subjetividade. Há igualmente por parte do apenado e do egresso certa dificuldade de lidar com esse corpo marcado e com seus significados reais, já que se trata de um código intramuros, o qual, por determinado tempo ou contexto, foi respeitado e seguido, e junto à marca traz o sujeito de ação, antes, o sujeito de ação dita não aceita, sujeito de perigo, sujeito de ameaça a tão esperada e distorcida harmonia social.

Artigo publicado na versão impressa do Caderno Jurídico em outubro de 2013.

 

Bárbara Cossetin Costa Beber Brunini é psicóloga jurídica especialista em Adolescência e Programa Saúde da Família. Mestre em Ciências da Educação e em Psicologia e Sociedade pela UNESP. Doutoranda em Psicologia pela UEM. Atualmente é professora titular da Universidade Paranaense; psicóloga da prefeitura de Icaraíma/PR, atuando nas áreas de psicologia em saúde pública e psicologia jurídica; professora da Escola de Magistratura do Paraná; docente em cursos de pós-graduação e conferencista.

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