Concursos
Sindicabilidade do ato administrativo em provas de concurso público
Este artigo (pretendemos dividi-lo em três partes) apresenta uma visão geral acerca da sindicabilidade do ato administrativo em concursos públicos, baseado em julgamentos dos Tribunais Superiores, sob a exegese do que decidido em sede de Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 632.853 – Tema 485 do STF, com ênfase na ilegalidade proveniente de erro grosseiro. Vamos lá!
Em determinadas ocasiões, decisões judiciais podem alterar ou anular o que decidido previamente pelo administrador público, o qual detém discricionariedade para agir em busca do melhor fim público.
É o caso, por exemplo, da anulação da nomeação de ministro quando os requisitos legais não foram atendidos; da anulação de uma autorização para se construir ponte em área de reserva ambiental quando não houve a observância de normativo legal; da desapropriação de terras sem o adequado pagamento, entre outras inúmeras situações.
Sob o prisma da separação dos poderes, a regra é pela impossibilidade da intervenção judicial, salvo quando o ato administrativo violar a lei, tudo conforme determina o sistema democrático de freios e contrapesos.
No que se refere aos atos administrativos praticados pela Administração Pública e pela Banca Examinadora num procedimento de elaboração e concretização de um concurso público, tais regras devem ser, por óbvio, observadas, dada a auto executoriedade e a presunção de veracidade que gozam os atos administrativos.
Ou seja, havendo erro ou ultrapassando-se a razoabilidade quando da elaboração da questão de um concurso, o Poder Judiciário deve agir, com a finalidade precípua de manter a legitimidade da escolha do candidato melhor preparado, sob pena de se fechar os olhos às arbitrariedades eventualmente cometidas pela Administração Pública.
Referido controle judicial é de extrema importância, uma vez que a soberania das bancas não pode ultrapassar a legalidade, sob pena de se dar brecha à manipulação de resultados, situação que deve ser energicamente reprimida, uma vez que, a longo prazo, pode ser uma perigosa forma política de aparelhar o Estado com apadrinhados de um administrator com más intenções.
Não pode o examinador considerar errada a resposta dada pelo candidato caso o edital ou o próprio corpo da questão não exija qual orientação a seguir. Desde que o candidato comprove que sua resposta, em que pese divergir de um doutrinador, é plausível e embasada em outro doutrinador/área do conhecimento.
Tal entendimento – intervenção do Judiciário quando constatada a ilegalidade em questões de concursos – é instrumento garantidor de um Estado democrático de direito.
Neste sentido, o Egrégio STF, quando do julgamento do RE 632.853, em 23/04/15, decidiu tema que vem gerando algumas divergências, dada a existência de interpretações restritivas que, caso sejam analisadas literalmente, vão de encontro ao próprio artigo 5 º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988, que é claro ao afirmar que “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.¹
Portanto, a razão do presente artigo é explicitar o entendimento atual dos Tribunais Regionais e das Cortes Superiores acerca da atuação do Poder Judiciário quando constatada a ilegalidade em questões de concurso público, em especial a existência de erro grosseiro, de modo a corroborar com a interpretação de que a Tese 485 (definida pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário 632.853, em 23/04/2015), embora trate a atuação do Judiciário como minimalista, deve abarcar a correção de qualquer tipo de ilegalidade.
Isto tudo porque o acesso ao Judiciário é uma forma de concretizar a democracia constitucional. Antes, porém, faz-se necessário alguns breves comentários sobre o ato administrativo.
Atos administrativos em procedimento de concurso público
Maria Sylvia Zanella Di Pietro conceitua o ato administrativo como “[...] a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com a observância da lei, sob o regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário.”²
Para compreendermos melhor, relembremos os cinco elementos do ato:
Competência
É o poder decorrente da lei conferido ao agente administrativo para o desempenho regular de suas atribuições. Somente a lei pode determinar a competência dos agentes na exata medida necessária para alcançar os fins desejados. É um elemento sempre vinculado.
Finalidade
É o resultado que a administração pública deve alcançar com a prática do ato. É aquilo que se pretende com o ato administrativo. É um elemento sempre vinculado.
Forma
O ato deve respeitar a forma exigida para a sua prática. É a materialização, ou seja, como o ato se apresenta no mundo real. É um elemento sempre vinculado.
Motivo
Consiste na situação de fato e de direito que gera a necessidade da administração pública em praticar o ato administrativo. Exemplo: é a falta de servidores que leva a administração a realizar o concurso público. É um elemento discricionário.
Salienta-se que o Motivo é diferente de Motivação. Esta, por sua vez, é a demonstração dos motivos, ou seja, é a justificativa por escrito de que os pressupostos de fato realmente existiram. A motivação pode ser entendida, por exemplo, com o a justificativa apresentada pela banca examinadora para a manutenção de certo gabarito.
Como é cediço, os atos discricionários da administração pública estão sujeitos ao controle pelo Judiciário quanto à legalidade formal e substancial, cabendo observar que os motivos embasadores dos atos administrativos vinculam a administração, conferindo-lhes legitimidade e validade.
Consoante a Teoria dos Motivos Determinantes, o administrador vincula-se aos motivos elencados para a prática do ato administrativo. Nesse contexto, há vício de legalidade não apenas quando inexistentes ou inverídicos os motivos suscitados pela administração, mas também quando verificada a falta de congruência entre as razões explicitadas no ato e o resultado nele contido.³
Objeto
É o resultado prático causado em uma esfera de direitos. É um ato discricionário.
No que se refere à atuação do Judiciário quando há erro crasso ou flagrante ilegalidade no andamento de um concurso público, os defeitos do ato administrativo encontram-se, em regra, na motivação do ato e na suposta discricionariedade, que acaba por extrapolar o que é permitido pela legislação.
Em questão de concurso, o examinador tem certa discricionariedade para agir, podendo exigir do candidato, por exemplo, a posição do STJ ou do STF sobre algum tema, mas sempre deixando claro a referida exigência. A justificativa escrita para o gabarito seria o que chamamos de motivação do ato.
Por conseguinte, não pode o examinador considerar errada a resposta dada pelo candidato caso o edital ou o próprio corpo da questão não exija qual orientação a seguir. Ou seja, desde que o candidato comprove que sua resposta, em que pese divergir de um doutrinador, é plausível e embasada em outro doutrinador/área do conhecimento.
Outra situação que invalidada o ato administrativo exarado pela banca é quando o gabarito oficial utiliza fundamento inexistente ou teratológico. Há, portanto, vício nos motivos do ato.
Em verdade, a boa-fé objetiva, que se consubstancia em razoabilidade e legitimidade do concurso, deve estar sempre presente em todos os atos administrativos.
É neste sentido que a discricionariedade do ato administrativo exarado pelo examinador deve ser analisada. Ou seja: pode-se optar por cobrar do candidato diversas matérias englobadas no edital, mas nunca se poderá considerar correto resposta diametralmente contrária a teses pacíficas sobre determinado ramo do conhecimento, a menos que o examinador informe que deseja como resposta o entendimento minoritário, sob pena de afronta à boa-fé.
Nestes aspectos, a sindicabilidade configura-se como uma forma de conter abusos e deve ser interpretada sob o enfoque de uma nova sistemática do Direito Administrativo.
E é sob esta perspectiva que a tese exarada no tema 485 do STF, extraída do julgamento do Recurso Extraordinário 632.853, em 23/04/2015, deve ser interpretada.
Atos da banca examinadora
Os atos exarados num processo de concurso público por parte da administração são, em sua essência, atos administrativos. Qualquer ilegalidade provada, mesmo que sob a suposta alegação de discricionariedade por parte do administrador público, deve ser submetida ao controle do Judiciário.
Assim, o ato da banca examinadora que declara o acerto ou erro em determinada questão objetiva é, por natureza, ato administrativo.
Especificadamente no que se refere ao controle da pontuação das questões objetivas, o tema 485 do STF trouxe algumas discussões que serão objeto de análise e respostas no decorrer do presente artigo.
Este assunto tomou maiores proporções após 23/04/2015, quando o STF julgou o Recurso Extraordinário 632.853, em regime de Repercussão Geral, gerando a seguinte tese:
“Recurso extraordinário com repercussão geral. 2. Concurso público. Correção de prova. Não compete ao Poder Judiciário, no controle de legalidade, substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a elas atribuídas. Precedentes. 3. Excepcionalmente, é permitido ao Judiciário juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital do certame. Precedentes. 4. Recurso extraordinário provido”4
Num primeiro momento, muitos tiveram a impressão de que a banca examinadora e, consequentemente, a administração pública, somente seriam responsabilizadas se exigissem conhecimento que ultrapassassem o limite de conteúdo elencado no edital do certame.
Tal entendimento está correto, mas vai além.
Se fosse interpretada literalmente a referida tese, estaríamos voltando no tempo, indo de encontro à concretização da Justiça. A interpretação deve pautar-se numa análise sistêmica do Direito Administrativo, tendo em vista que os atos existentes na realização de um concurso público são “atos administrativos” na sua essência, devendo obedecer os princípios e institutos à eles aplicados.
Considerando que a administração pública vem, corriqueiramente, fazendo uma leitura de que – com exclusão da matéria fora do edital – qualquer cobrança desarrazoada, desproporcional ou ilegal está blindada de ataques de candidatos, dada a interpretação rasa e literal do RE 632.853 – vide enxurrada de ações na Justiça contestando gabaritos oficiais –, o presente artigo esclarece e comprova que o tema 485 do STF, em que pese pautar por uma intervenção minimalista do Judiciário sobre aspectos inerentes à banca examinadora, não pode, em hipótese alguma, impedir a correção de flagrante ilegalidade cometida quando da análise de questões do concurso público.
O tema é de extrema importância. Então na segunda parte do artigo iremos dissertar sobre a ilegalidade do ato administrativo e a banca examinadora. Até semana que vem.
Felipe Cesar Michna é Procurador Federal da AGU (Advocacia-Geral da União), especialista em Direito Público e pós-graduado em Direito e Processo Tributário.
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1 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: versão atualizada até a Emenda 64/2010. Disponívelem:http://www.senado.gov.br/ legislacao/const/con1988/CON1988_ 04.02.2010/CON1988.pdf. Acesso em: 20.08.2015.
2 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2012. P. 203.
3 (MS 15.290/DF, Rel. Min. Castro Meira, Primeira Seção, julgado em 26.10.2011, DJe 14.11.2011).
4 (RE 632853, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 23/04/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-125 DIVULG 26-06-2015 PUBLIC 29-06-2015).