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Jornal Caderno Jurídico

Direito Penal e Processual Penal

Aspectos históricos, administrativos e criminais do porte de armas de fogo

11/7/2018 às 14h23 | Atualizado em 11/7/2018 às 14h32 - Rafael Dantas
LFG Rafael Dantas Dantas: as organizações criminosas não foram inibidas pelo Estatuto do Desarmamento

Os seres humanos compõem uma das espécies menos favorecidas pela natureza quando o assunto é força física, garras, forte dentição, atributos que geralmente dotam predadores como leões e lobos.

Por outro lado, nós humanos também não temos os predicados como velocidade, audição e faro apurado, comuns às espécies que são predadas, até mesmo para que não sejam “presas fáceis”.

Mas, por algum motivo, somos a espécie predominante no planeta, sendo que nunca houve um domínio tão amplo e intenso como o nosso.

 

Qual seria então o motivo desse nosso domínio?

A antropologia aponta como resposta que nosso instinto gregário e as capacidades linguística e de abstração possibilitaram o desenvolvimento de complexas comunidades até o advento da civilização, o que evidenciou de sobremaneira a singularidade do domínio da humanidade.

Mas, se não temos os atributos físicos do predador e nem os predicados das presas “não fáceis”, por quais meios nossa predominância foi estabelecida?

A resposta é a de que nossos instintos e capacidades nos permitiram desenvolver ferramentas, até mesmo armas, para que não fossemos mais presas de animais selvagens e com elas pudéssemos migrar de meros agrupamentos nômades para complexas civilizações.

Se não nos arrumarmos não faremos frente ao crime, que - ao contrário de nós - é cada vez mais organizado.

A ordem e a organização necessária para o desenvolvimento de civilizações dependeu e depende da existência de armas, as quais afastam a selvagem “lei do mais forte”.

Se não nos arrumarmos não faremos frente ao crime, que - ao contrário de nós - é cada vez mais organizado.

Famílias e comunidades puderam defender seus entes mais vulneráveis (crianças, idosos e mulheres), suas propriedades e o fruto de seu trabalho graças às armas.

O advento da arma de fogo permitiu uma autonomia ainda maior dessas famílias e comunidades, uma vez que não era mais necessária grande destreza e força física para seu manejo. Além do que, as ameaças poderiam ser refutadas a distância.

De toda forma, como em toda história humana, houve, há e haverá mau uso de armas de fogo. Porém, é inegável que se trata de um importante instrumento emancipador e igualador das pessoas.

O atual flagelo da segurança pública evidencia que o Estado-Policial não está e jamais estará em todos os lugares para garantir uma razoável sensação de segurança.

Essa afirmação é especialmente importante em um país de vastidão continental como o Brasil, com áreas rurais remotas, ao mesmo tempo que conta com áreas urbanas desordenadamente adensadas, que possuem uma malha urbana onde o deslocamento é, em geral, vagaroso.

Perpassando para uma análise histórico-jurídica, a posse e o porte de armas de fogo no Brasil sempre foram permitidos.

Ocorre que, em 2005, fez-se um referendo nacional cuja indagação foi a seguinte: “O comércio de armas de fogo e munições deve ser proibido no Brasil?”

O resultado foi que 63,94% dos eleitores disseram NÃO. Ou seja, o comércio de armas de fogo e munições NÃO deve ser proibido no Brasil.

De toda forma, nosso país nunca teve um histórico democrático nem de respeito à democracia. Apesar do sonoro resultado, a posse e principalmente o porte de arma de fogo terminaram inviabilizados na prática.

A Lei 10.826/03, que previu o referendo para a proibição do comércio de armas de fogo e munições, foi moldada tendo-se em vista que o povo do Brasil diria SIM ao referendo.

Não por outro motivo, a referida lei trouxe exigências draconianas para a posse e o porte de armas de fogo, além do que recebeu a denominação de Estatuto do Desarmamento.

Diante desse cenário, o correto, sob o viés democrático, seria a adoção de uma nova legislação que acatasse a vontade popular manifestada.

Ainda mais porque o artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal, aduz que todo poder emana do povo, que nesse caso, o exerceu diretamente.

Como de costume, o parlamento quedou-se inerte, não se restando outra hipótese senão a de considerar a inconstitucionalidade do Estatuto do Desarmamento, haja vista que a vontade popular não foi pelo desarmamento.

De toda forma, não há manifestação judicial sobre tal questão, nem mesmo da Suprema Corte.

 

Aspectos administrativos

Considerando que a Lei 10.826/03 continua vigente e eficaz, passemos a analisá-la sob o ponto de vista de quem deseja possuir ou portar uma arma de fogo.

A posse de arma de fogo permite ao cidadão ter uma arma em sua residência ou em seu local de trabalho. Isso desde que ele seja responsável por esse último.

O porte, por sua vez, permite que a pessoa circule com a arma de fogo, a qual pode estar pronta para uso.

A depender da potência da arma de fogo, seu controle pode se dar por meio do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), órgão da Polícia Federal, ou pelo Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), ligado ao Exército Brasileiro.

As armas de calibre permitido, as mais fracas (como um revólver calibre 38 ou uma pistola calibre .380), estão sob o controle do Sinarm. Já as de calibre restrito (como uma pistola 9mm) ficam com o Sigma.

O cidadão comum (aquele que não pertence a determinadas carreiras policiais, militares, judiciais e afins), para possuir uma arma de fogo, deve se submeter às exigências do artigo 4º, da lei 10.826/03, a saber:

 

Artigo 4º

Para adquirir arma de fogo de uso permitido, o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos:

I – comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal, que poderão ser fornecidas por meios eletrônicos;

II – apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa e;

III – comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestadas na forma disposta no regulamento desta lei.

 

No que concerne ao porte de arma de fogo, cabe colacionar o artigo 6º, da referida lei, cuja redação inicial o proíbe (abrindo algumas exceções a determinadas carreiras públicas), em evidente conflito com o declarado em referendo popular:

 

Artigo 6º

É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para:

Em um ato um tanto incoerente, a mesma lei, em seu artigo 10º, traz a seguinte redação:

 

Artigo 10º

A autorização para o porte de arma de fogo de uso permitido, em todo o território nacional, é de competência da Polícia Federal e somente será concedida após autorização do Sinarm.

 

§ 1º

A autorização prevista neste artigo poderá ser concedida com eficácia temporária e territorial limitada, nos termos de atos regulamentares, e dependerá de o requerente:

I – demonstrar a sua efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física;

II – atender às exigências previstas no art. 4o desta lei;

III – apresentar documentação de propriedade de arma de fogo, bem como o seu devido registro no órgão competente.

Como visto, alcançar o registro de uma arma de fogo, o que permite sua posse não é das tarefas mais fáceis. Porém, com relação ao porte, a situação fica ainda pior.

 

Aspectos criminais

Em que pese a manifestação de vontade popular exercida por meio do referendo, o comércio e o controle de armas de fogo não deve existir sem nenhum controle efetivo.

As armas de fogo são objetos altamente vulnerantes. É interesse da sociedade saber quem as possui e onde elas estão.

Pessoas desprovidas de capacidade mental e moral não podem ter o direito de possuir e de portar armas.

Tal como acontece com os automóveis, alguma regulamentação há de existir. Só não precisava ser como a atual, a qual inviabiliza a propriedade de tais objetos.

De toda forma, possuir ou portar armas de fogo em desacordo com o estabelecido em lei merece ser uma conduta criminalizada, haja vista o inerente risco à sociedade.

Para se bem compreender, o que faz uma pessoa a possuir ou a portar uma arma de fogo sem autorização legal? Boas intenções é que não deve ter.

Por isso, antes mesmo que essas más intenções se concretizem em um homicídio ou em um roubo, esse sujeito deve ser neutralizado.

Trata-se do denominado crime obstáculo, em que atos preparatórios para outros delitos graves já são criminalizados, com vistas a dar uma proteção ainda maior a bens jurídicos importantes.

Diante disso, vamos analisar os principais crimes previstos na Lei 10.826/03, que dizem respeito à posse e ao porte de arma de fogo em desacordo com as normas legais e regulamentares.

No artigo 12 da mencionada lei, está previsto o delito de posse ilegal de arma de fogo, acessório ou munição de calibre permitido, cujas penas vão de um a três anos, além de multa.

Por outro lado, no artigo 14, a mesma lei descreve o crime de porte ilegal de arma de fogo, acessório ou munição de calibre permitido, sendo as penas variam de dois a quatro anos, além de multa.

No que diz respeito às armas de calibre restrito, posse ou porte ilegais estão previstos no mesmo artigo 16, o qual traz penas de três a seis anos, além de multa.

Cabe destacar que a posse e o porte de arma de fogo de uso restrito configuram crime hediondo, conforme o artigo 1º, parágrafo único, da lei 8072/90.

 

Considerações Finais

Venhamos e convenhamos, as pequenas penas, em todas as situações, servem para inibir a posse e o porte de arma de fogo das pessoas que não têm nem pretendem ter envolvimento com a criminalidade.

Um criminoso “profissional” não terá nesses crimes um obstáculo real e efetivo para suas empreitadas delinquentes.

Nessa esteira, percebe-se, a toda evidência, que as organizações criminosas não foram inibidas pelo Estatuto do Desarmamento.

Talvez essa análise pontual nos mostre algo maior, pois se nem mesmo nossa lei sobre o controle de armas é organizada, como organizar uma política eficaz de segurança pública?

Nesse sentido, se nós, sociedade, e nosso estado não nos organizarmos, não faremos frente ao crime, o qual, ao contrário de nós, é cada vez mais organizado.

 

Rafael Dantas é delegado da Polícia Federal e professor de Criminologia, Direito Penal, Direito Processual Penal e Legislação Penal Especial na LFG.

 

Artigo publicado no jornal impresso de abril de 2018.

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