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Jornal Caderno Jurídico

Direito Constitucional

Modulação de efeitos, segurança jurídica e coisa julgada: o RE 955.227/BA constitui precedente obrigatório e como tal pode ser invocado?

11/12/2023 às 18h57 - Gleison do Prado
Arquivo Gleison do Prado Gleison Prado: ao julgar o RE 955.227, o STF não modulou os efeitos da decisão, permitindo a União o ajuizamento de ações para reaver créditos da CSLL

No controle difuso de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal decidiu sobre os limites temporais da eficácia da coisa julgada nas relações jurídico-tributárias de trato continuado. A partir disso, fixou tese jurídica a partir do Tema nº 885, ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) 955.277/BA. Segundo o entendimento da Corte, nas ações diretas ou em sede de repercussão geral, a decisão incidental interrompe automaticamente os efeitos temporais das decisões com trânsito em julgado, sem que haja modulação prospectiva dos efeitos de tal decisão.

Trata-se, resumidamente, da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, tributo de competência da União Federal. A decisão do Supremo permitirá a cobrança dos créditos tributários dos últimos cinco anos, podendo chegar a “milhões ou mesmo bilhões de reais” (JORGE, Carolina S. F. STF acerta em cessar a coisa julgada individual, mas erra ao não modular efeitos. Disponível em: https://apet.org.br/artigos/stf-acerta-em-cessar-a-coisa-julgada-individual-mas-erra-ao-nao-modular-efeitos/. Acesso em: 14 nov. 2023).

Na Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen afirmou que “um tribunal, especialmente um tribunal de última instância, pode receber competência para criar, através de sua decisão, não só norma individual, apenas vinculante ao caso sub judice, mas também normas gerais. Isso é assim quando a decisão judicial cria o chamado precedente” (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado. 8 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 277-8).

Atualmente, é possível afirmar que “os precedentes emanam das Cortes Supremas e são sempre obrigatórios – isto é, vinculantes” (MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão a vinculação. 4 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 91). São vinculantes, porque, além de serem emanados pelo Supremo Tribunal Federal e/ou pelo Superior Tribunal de Justiça - Cortes constitucionalmente legitimadas a desenvolverem o direito em diálogo institucional com o Legislativo - “a parte da decisão que constitui precedente é, tão somente, aquela que trata de uma questão de direito” (MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 7 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 85). De direito! A decisão sobre a questão de fato, com efeito, não constitui precedente.

Contudo, “o que faz um precedente é o tribunal subsequente segundo uma decisão proferida em caso pretérito” (STRECK, Lenio Luiz. Precedentes Judiciais e Hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015. 3 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2021. p. 118), precisamente porque o precedente, “aplica-se a todos os casos que, embora diferentes, racionalmente não têm razão para ser solucionados de modo distinto” (MARINONI, Luiz Guilherme. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas: decisão de questão idêntica x precedente. 2 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 68).

Nesse momento, é de todo oportuno sublinhar que a elaboração de um precedente se concentra nos fundamentos da decisão das Cortes Supremas. Assim, “o isolamento das questões é importante para a definição da ratio” (MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios... op. cit., p. 293-5). No julgamento do Recurso Extraordinário em análise, ademais, houve a delimitação da questão da modulação dos efeitos da decisão e ampla discussão em Plenário.

Ora bem, “a decisão do Supremo Tribunal Federal foi unânime no sentido de que ‘as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações’” (STRECK, Lenio Luiz. Uma (nova) reflexão sobre a coisa julgada no Supremo Tribunal Federal. Revista Eletrônica: Consultor Jurídico – CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-30/senso-incomum-reflexao-coisa-julgada-recente-julgado-stf. Acesso em: 29 jul. 2023). Não obstante isso, no RE 955.227/BA em análise, ao não modular os efeitos prospectivos da decisão, o Supremo Tribunal Federal, por maioria simples (6 x 5 votos), fez cessar a eficácia da coisa julgada para o contribuinte da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, cuja decisão objeto do recurso extraordinário houvera transitado em julgado no ano de 1992.

Outrossim, se as súmulas do Supremo Tribunal Federal têm eficácia vinculante no ordenamento jurídico por “enunciarem o entendimento derivado de um conjunto de precedentes da Corte, cuja missão é dar sentido único ao direito mediante a afirmação da Constituição” (MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios... op. cit., p. 312-5), e a aprovação de súmulas vinculantes esteja reservada a decisão de dois terços dos ministros do Supremo, por não menos razão a quantidade mínima de votos para a definição do caráter obrigatório do precedente da Corte há de exigir, reitera-se, no mínimo, oito votos para que haja o obrigatoriedade de observação por parte dos juízes e tribunais no desincumbir do mister que lhes são respectivos, e, consequentemente, o precedente, por tornar-se obrigatório, ostentará efeito vinculante e erga omnes.

 

E se um ministro se aposentar?

Além disso, uma decisão do Plenário do Supremo por maioria simples, isto é, seis votos a favor e cinco votos contrários no que concerne a uma determinada questão de direito, pode ser “majoritária quanto ao resultado, mas incapaz de gerar precedente, uma vez que nenhum dos fundamentos da decisão do recurso é sustentado pela maioria absoluta da Corte” (MARINONI, Luiz Guilherme. Processo Constitucional e Democracia. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 1140).

Esse debate se torna ainda mais importante quando, entre os membros da Corte que votaram favoravelmente sobre a questão de direito, encontra-se um(a) ministro(a) prestes a se aposentar, pois, com o ingresso de um novo membro, o resultado da decisão sobre a questão pode ser inteiramente revertido a depender do entendimento adotado pelo novo ministro.

Não se trata de um raciocínio jurídico remoto, distante da realidade. Todo o oposto. Na decisão sobre a modulação dos efeitos, restaram “vencidos os Ministros Edson Fachin, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e, em parte, o Min. Nunes Marques, que propunham modulação” (STF - Supremo Tribunal Federa. RE 955227/BA, rel. Min. Roberto Barroso, Plenário, j. 08.02.2023. Dje. 02.05.2023. Disponível em: https://encurtador.com.br/lMOP8. Acesso em: 26 jul. 2023).

A Ministra Rosa Weber, que votou no sentido contrário, ou seja, pela não modulação dos efeitos da decisão, se aposentou compulsoriamente mês passado - completou 75 anos. Com o ingresso de um novo ministro, o entendimento da Corte pode ser revertido. Dito de outro modo, a tese construída pelo Supremo a partir do Tema 885 poderá ser alterada para a possibilidade da modulação dos efeitos nas decisões que impactam automaticamente a coisa julgada decorrente das relações jurídicas de trato continuado. Tudo isso, repisa-se, em razão da mudança de entendimento de um único ministro da Corte, em decorrência do atual resultado ser consubstanciado nos votos da maioria simples do plenário (6 x 5). Afigura-se impossível, entretanto, a formação de precedente obrigatório quando a decisão do Supremo não for amparada por, no mínimo, oito de seus membros.

Ainda no tocante a modulação dos efeitos, importa destacar que “uma ratio decidendi – ou seja, um precedente – enquanto significado que revela o entendimento da Corte sobre a questão Constitucional, só pode ser formada pela maioria absoluta do plenário” (MARINONI, Luiz Guilherme. Processo Constitucional e Democracia... op. cit., p. 647).

A ausência de maioria absoluta quanto ao fundamento da não modulação prospectiva dos efeitos na formação da tese jurídica adotada no tema número 885 do Supremo Tribunal Federal, não é capaz de elaborar precedente obrigatório quanto a questão da modulação dos efeitos da decisão.

Por conseguinte, no controle difuso de constitucionalidade exercido pelo juiz de primeiro grau de jurisdição, a vinculação à decisão do Supremo no RE 955.227/BA se dará no que se refere ao interrompimento automático dos efeitos temporais das decisões com trânsito em julgado nas relações jurídicas de trato continuado. Por outro lado, segundo a teoria dos precedentes constitucionais adotada por Luiz Guilherme Marinoni, entende-se, não haverá vinculação quanto a modulação prospectiva dos efeitos da decisão.

Finalmente, ao aplicar a tese firmada pelo Supremo, o magistrado de primeiro grau fará cessar automaticamente os efeitos da decisão transitada em julgado nas relações de trato continuado, pois fora consagrada por unanimidade pelo plenário. Entretanto, poderá modular os efeitos da decisão para o futuro, de modo a preservar a segurança jurídica, a confiança justificada e a estabilidade da decisão judicial, pois, em havendo a cessação da eficácia ex nunc, isto é, para o futuro, a garantia constitucional da coisa julgada restará intocada, coadunando-se aos valores fundamentais da Constituição.

 

Gleison do Prado de Oliveira é acadêmico de Direito da Unipar Umuarama, graduado em Ciências Contábeis, com pós em Gestão Pública e Direito Tributário.

 

Texto extraído de capítulo do artigo científico escrito por este autor, cujo título é "Limites Temporais da Eficácia da Coisa Julgada em Matéria Tributária: Segurança Jurídica e Possibilidade de Modulação dos Efeitos no Controle Difuso de Constitucionalidade", a ser publicado na Revista dos Tribunais, Editora Thomson Reuters. No texto científico, o capítulo foi assim delimitado: Pode o Recurso Extraordinário 955.227/BA ser invocado como Precedente Obrigatório?

 

Artigo publicado no jornal impresso Caderno Jurídico, de 17 de novembro de 2023, página 8.

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