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Jornal Caderno Jurídico

ESPAÇO ACADÊMICO

Discussões sobre o princípio da insignificância no crime de contrabando de cigarros

30/9/2023 às 18h49 - Karinny Leal
Divulgação Karinny Leal “A vinda destes cigarros ao Brasil funciona para auxiliar a manutenção do crime organizado”, explica a estudante Karinny Leal

O Código Penal vigente prevê dois crimes muito similares: o descaminho e o contrabando. O primeiro, disposto no artigo 334 do diploma legal, criminaliza aquele que burla o pagamento de impostos devidos. O segundo se refere ao contrabando, que trata do ato de importar ou exportar mercadoria proibida, como se nota da leitura do artigo 334-A do livro criminal supramencionado.

Estimado leitor, em se tratando de trazer cigarros do país vizinho (Paraguai), crime extremamente comum aqui no Noroeste do Paraná, região de fronteira, ambos os crimes são aplicáveis. Mas como diferenciar quando será um e quando será outro? Afinal, apesar da punição de ambos ser em reclusão, o contrabando é mais penoso que o descaminho, com aumento de um ano nas penas mínimas e máximas. Então, penalizar corretamente é crucial (importante) ao acusado.

Salutar relatar que o consumo de cigarros no Brasil é permitido. É uma droga lícita que sofre restrições regulamentares. A exemplo, o artigo 600 do Regulamento Aduaneiro (Decreto número 6.759/2009) e o artigo 2º-D do Decreto-Lei número 1.593/1977, que vedam a importação de cigarros de marca não comercializada no país de origem. Pensando bem, vale o questionamento: se nem o país que produz “cigarrilha” permite sua comercialização, porque mexer (vender) no Brasil?

Afasta-se a hipótese de tráfico de entorpecentes por se tratar de droga lícita. Se tratará de descaminho quando o cigarro trazido do exterior estiver de acordo com as regulamentações legais e houver a tentativa de ilidir o pagamento dos impostos devidos. Quando a “cigarrilha” trazida estiver em desacordo com as normas estabelecidas, como as vedações mencionadas, a conduta será de contrabandear.

 

Bagatela

Conforme precedentes atuais do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, com competência para lidar com crimes federais cometidos no território Sul do país (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), como é o caso de descaminho e contrabando dotados de transnacionalidade, é possível a aplicação do Princípio da Insignificância ou Bagatela (aquele que determina a não punição de crimes que geram uma ofensa irrelevante à bem jurídico), em caso de descaminho de cigarros, quando os impostos driblados forem inferiores a R$ 20.000,00, desde que não haja reiteração/habitualidade delitiva pelo agente, e em caso de contrabando, quando inferior a 500 maços de cigarros, presumindo-se não se tratar de importação com destinação comercial.

 

Cigarro eletrônico

Na atualidade, há a hipótese de contrabando/descaminho de cigarros eletrônicos, onde, de acordo com o TRF4, “diferentemente do cigarro comum, cujo consumo importa em sua destruição imediata, sendo necessária constante reposição, o cigarro eletrônico é reutilizável, [...]. Assim, quando se trata da apreensão significativa de cigarros eletrônicos, [...], a destinação comercial é mais facilmente verificável”, motivo pelo qual já se configurou o crime, sem incidência de insignificância, no caso de sujeito em posse de 20 unidades de cigarros eletrônicos. (ACR 5000446-02.2020.4.04.7005 e ACR 5005980-56.2022.4.04.7004 – Relator Luiz Carlos Canalli, 7ª Turma do TRF4).

No entanto, os precedentes ainda não são pacificados nacionalmente, motivo pelo qual surgiu a discussão do Tema Repetitivo número 1.143 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), atualmente em julgamento corrente sem afetação geral, que busca estabelecer que o “princípio da insignificância não se aplica aos crimes de contrabando de cigarros, por menor que possa ter sido o resultado da lesão patrimonial, pois a conduta atinge outros bens jurídicos [...].”

Em contraponto, há a ideia de aplicar a insignificância quanto a quantidade de cigarros contrabandeados for inferior aos 1.000 maços, em razão a diminuta reprovabilidade da conduta e pela necessidade de efetivamente repreender o contrabando vulto, exceto quando houver a reiteração/habitualidade delitiva, já que o Estado não tem estrutura para atuar em todos os ilícitos que são praticados.

O Ministério Público Federal tem concordado com a aplicação da bagatela, entendendo que é inconveniente o órgão concentrar seus esforços em várias condutas de contrabando em quantidade que consideram ínfima, enquanto os “peixes grandes” passam batido – sem atenção.

O tema segue cheio de controvérsias, acalorando debates entre qualidade ou severidade do sistema penal. Há ministros entendendo que deixar de punir as práticas até 1.000 maços é a falência do Estado, sua decadência, por se tratar de contrabando. Outros apontam que não adianta “tapar o sol com peneira” quando se pode concentrar os maiores esforços para situações de maior repercussão, já que não existe estrutura para cuidar de todos, sendo que os opostos entendem ser este o erro: o reconhecimento de que não há como reverter a realidade.

O mais difícil nesta contenda é o fato de que ambos os posicionamentos são lógicos e fazem sentido. Realmente, o contrabando de cigarros é uma conduta inadmissível que precisa ser reprimida em toda quantia, mas, se isso não é possível neste momento, não faz sentido focar naqueles que ameaçam mais os bens jurídicos em questão?

Bens jurídicos que englobam, além da lesão patrimonial, a saúde (já que os produtos contrabandeados vão contra as regulamentações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a ANVISA), a incolumidade (segurança) e moralidade pública, conforme destaca a própria tese em julgamento no STJ.

Em contrapartida, há baixa reprovabilidade social no que tange ao descaminho/contrabando de cigarros, sendo a prática até mesmo naturalizada em regiões de fronteira, como se fosse um crime menor, quase que uma profissão para quem tem poucas opções, ou passa por dificuldades financeiras, desconhecendo ou simplesmente ignorando que a maioria dos agentes que o fazem escolhem esse caminho por ser altamente lucrativo com baixo risco, já que a fiscalização que ocorre na fronteira tem dificuldade em absorver tamanho volume de ilícitos.

 

Financiamento de organizações criminosas

Ademais, muitas vezes, a prática serve, pelas mesmas razões (alto lucro x baixo risco), para financiar organizações criminosas, favorecendo a prática de outros crimes graves, como o tráfico de entorpecentes e de armamentos de fogo, além da lavagem de dinheiro, que estão diretamente relacionados ao aumento da violência no meio social.

Por certo, a decisão quanto ao Tema Repetitivo 1.143 do STJ vai mudar muito o sistema judiciário penal, seja tornando-o mais rígido (e provavelmente mais moroso e sobrecarregado) ou demonstrando que esta ultima ratio é um tanto quanto flexível. As duas formas parecem tão certas quanto erradas, e isso com certeza está pesando na decisão dos ministros encarregados pelo julgamento. É de se destacar, contudo, que independente da tese a ser firmada quanto a insignificância em relação ao contrabando de cigarros, a atuação da Receita Federal continuará sendo a mesma, apreendendo produtos e declarando perdimento, havendo apenas a dispensa da ação penal.

A pergunta que fica é se, com a alteração da aplicação da bagatela em relação ao contrabando, se houver e como houver, não faz sentido que haja mudança também no que tange ao descaminho de cigarros? O tema não o menciona, mas é certo que a vinda destes cigarros ao Brasil também funciona para auxiliar a manutenção do crime organizado, mesmo que este seja “menos” pior que contrabandear. Haverá equilíbrio na aplicação da insignificância entre crimes tão parecidos? Aliás, hoje, há verticalidade nos limites da bagatela entre estes ilícitos?

 

Karinny Leal Azevedo, graduanda em Direito pela UNIPAR, participante do Programa de Iniciação Científica (PIC), monitora em Direito Civil III pelo Programa Institucional de Bolsas de Incentivo à Monitoria (PIBIM) e estagiária da 1ª Vara Federal de Umuarama/PR, de competência Criminal.

Artigo orientado por Alessandro Dorigon, mestre em Direito, especialista em Direito e Processo Penal, especialista em Docência no Ensino Superior e a Distância, especialista em Direito Militar, professor adjunto de Direito Penal II e de Prática de Processo Penal na UNIPAR, Câmpus Umuarama e advogado.

Artigo publicado no jornal impresso de 25 de agosto de 2023, página 7.

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