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Jornal Caderno Jurídico

Direito Econômico e Tributário

A indisponibilidade de bens por ato extrajudicial criada pela lei 13.606

21/4/2018 às 1h42 | Atualizado em 6/8/2018 às 23h28 - Emilio Samuel
Divulgação Emilio Samuel Emilio: essa averbação é o primeiro procedimento que causa a indisponibilidade de bens do contribuinte sem qualquer provimento jurisdicional

No dia 9 de janeiro de 2018 foi publicada a Lei 13.606/2018 para instituir o Programa de Regularização Tributária Rural, trazendo importantes alterações no âmbito do Funrural (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural), que é mantido através de tributo incidente sobre receita obtida na produção rural (artigo 15, Lei Complementar 11 de 1971). A referida lei vem sendo tratada como “Refis do Funrural”, porque permite que os produtores rurais renegociem suas dívidas com o Funrural, reduzindo multas e juros, ampliando a possibilidade de parcelamento e, por isso, tem sido bem recebida pelo setor ruralista.

Entretanto, há disposições da nova lei que despertaram maior atenção da comunidade jurídica.

Precisamente, no seu artigo 25, o novel diploma legislativo inseriu três artigos (20-B, 20-C e 20-E – o 20-D sofreu veto presidencial) na Lei 10.522/2002 que regulamenta o cadastro dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais (CADIN). Dentre as inovações, aquela trazida no artigo 20-B, §3º, II é a mais polêmica: indisponibilidade de bens por ato administrativo.

Aqui, cabe ressaltar uma particularidade. As alterações na Lei 10.522/2002 foram originárias do Projeto de Lei 9.206/2017, apresentado em substituição ao Projeto de Conversão da Medida Provisória 793/2017 – MP que havia sido editada com a finalidade de instituir o Programa de Regularização Tributária Rural, que agora está regulamentado pela conversão do Projeto na Lei 13.606/2018. Apesar das inovações estarem relacionadas com a cobrança de crédito tributário federal, elas não dizem respeito especificamente ao tema primordial da Medida Provisória que era instituir o Programa de Regularização Tributária Rural e isso pode caracterizar “contrabando legislativo”, isto é, inserção de assunto diferente do que é tratado na medida provisória, prática vedada pela Constituição Federal (STF, ADI 5127/DF).

Inúmeros questionamentos que ele viola os preceitos constitucionais da reserva de jurisdição e do direito de propriedade.

De todo modo, a lei estabelece que, após a inscrição do crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento (caput do artigo 20-B); caso o débito não seja pago no prazo fixado, a Fazenda Pública pode averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis (artigo 20-B, §3º, II).

Como se vê, o simples não pagamento do débito inscrito em dívida ativa pode acarretar na indisponibilidade de bens sem necessidade de qualquer medida jurisdicional em processo executivo: basta que a Fazenda averbe a certidão no órgão de registro de bem para que ele fique indisponível. Observe que o texto normativo não faz distinção de origem para o crédito; exige-se somente que ele tenha sido inscrito em Dívida Ativa da União. Assim, qualquer crédito da União, seja originário do Imposto de Renda, de Contribuição Previdenciária ou do próprio Funrural, por exemplo, poderá ser submetido a esta nova sistemática.

Este dispositivo, por possibilitar a indisponibilidade de bem sem determinação judicial, tem suscitado o debate entre os operadores do Direito. Compreende-se que a previsão é um importante instrumento para a recuperação de créditos. Nesse sentido, o Código Tributário Nacional já estabelece que a dívida regularmente inscrita goza da presunção de certeza e liquidez (artigo 204) e que a alienação de bens por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa já é presumida fraudulenta (artigo 185). Além do mais, a medida soma-se a outros instrumentos extrajudiciais disponíveis que fomentam a recuperação de créditos a exemplo do protesto da certidão de dívida ativa (parágrafo único do artigo 1º da Lei 9.492/1997) e do arrolamento de bens no caso de dívida fiscal superior a 30% do patrimônio conhecido do contribuinte (Lei 9.532/97). Relembre-se, todavia, que o arrolamento de bens não torna o bem indisponível, permitindo que o bem arrolado seja alienado e só exige a comunicação antecipada do negócio ao fisco.

Assim, a averbação criada pela Lei 13.606/18 é o primeiro procedimento que causa a indisponibilidade de bens do contribuinte sem qualquer provimento jurisdicional.

Segundo o artigo 20-E da Lei 13.606/18, cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a edição dos atos complementares para o cumprimento das novéis disposições. Por isso, foi publicada no Diário Oficial da União do dia 9/2/2018 a Portaria 33 da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) para regulamentar a aplicação daqueles dispositivos. Nessa linha, a portaria classifica o referido bloqueio como “averbação pré-executória” que é o “ato pelo qual se anota nos órgãos de registros de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, para o conhecimento de terceiros, a existência de débito inscrito em dívida ativa da União, visando prevenir a fraude à execução”.

Para a Procuradoria da Fazenda Nacional, a averbação pré-executória torna a execução fiscal mais efetiva, pois impede que o devedor se desfaça do patrimônio ao saber que poderá ser executado. Ademais, a medida não seria unilateral e aversa ao contraditório e ampla defesa; isto porque, além da oportunidade de se manifestar durante o próprio procedimento administrativo fiscal, pela ocasião do lançamento tributário e antes da inscrição em certidão da dívida ativa, haverá outra notificação do contribuinte após a inscrição da dívida.

Nesse sentido, a portaria regulamentadora, no artigo 21, §1º, estabelece que a averbação somente poderá ocorrer se o contribuinte, após a notificação da inscrição em dívida ativa, não efetuar o pagamento, não parcelar o valor integral do débito, não ofertar antecipadamente garantia em execução fiscal ou não apresentar Pedido de Revisão de Dívida Inscrita (PRDI). Esse pedido possibilita a reanálise, pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, dos requisitos de liquidez, certeza e exigibilidade dos débitos inscritos em dívida ativa da União, permitindo ao contribuinte alegar ampla matéria de defesa, a exemplo de vícios formais, decadência e pagamento (artigo 15 da Portaria 33/2018).

Outro argumento que ainda se levanta em defesa da averbação pré-executória é que ela propriamente não se confunde com expropriação do patrimônio. Isto porque, ainda que haja a averbação da existência da dívida no registro daquele bem, será necessário o ajuizamento da execução fiscal para que se consiga a ordem judicial de penhora e, após a expropriação do bem, possa obter a satisfação do crédito.

Entretanto, a indisponibilidade de bens por ato administrativo tem sido alvo de diversas críticas.

Argumenta-se, de início, que a Constituição Federal protege o direito à propriedade (artigo 5º, XXII da CF), sendo que as restrições a esse direito estão estabelecidas no próprio Texto Constitucional, sem constar nenhuma limitação ao patrimônio originária de dívidas fiscais.

Por conta disso, a indisponibilidade de bens está restrita a hipóteses específicas: artigo 185-A do Código Tributário Nacional, ordem de penhora na execução fiscal e a medida cautelar fiscal de indisponibilidade (Lei 8.397/1992). Todas elas, pois, são ordens judiciais que exigem decisão devidamente fundamentada e desde que preenchidos os requisitos legais para a sua decretação.

Nesse diapasão, a indisponibilidade de bens prevista na Lei 13.606/2018 seria inconstitucional. Inicialmente, ela estaria estabelecida numa lei ordinária quando a Constituição estabelece a reserva de lei complementar para o estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária (art. 146, III) e não exige o pronunciamento judicial para tal restrição. Inclusive, ela conflitaria diretamente com o artigo 185-A do CTN (inserido no CTN com a Lei Complementar 118/2005).

Cabe destacar, ademais, que a indisponibilidade do artigo 185-A do CTN já foi analisada pelo Superior Tribunal de Justiça que entendeu que o Judiciário somente pode decretar a medida se houver exaurimento de diligências em busca de bens penhoráveis: “a decretação da indisponibilidade de bens e direitos, na forma do artigo 185-A do CTN, pressupõe o exaurimento das diligências na busca por bens penhoráveis, o qual fica caracterizado quando infrutíferos o pedido de constrição sobre ativos financeiros e a expedição de ofícios aos registros públicos do domicílio do executado, ao Denatran ou Detran”.

Como era de se esperar, o dispositivo é alvo de ações que visam questionar a sua constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Até o presente momento, já se tem notícia de duas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas contra as regras da Lei 13.606/2018, que estabelecem a indisponibilidade de bens por ato administrativo, a ADI 5881, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro, e ADI 5886, ajuizada pela Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores de Produtos Industrializados. Ambas ações têm como relator o Ministro Marco Aurélio e possuem pedido de liminar para suspender a eficácia do dispositivo até o julgamento do mérito pelo Plenário do STF. Em síntese, a alegação é de que o dispositivo viola os preceitos constitucionais da reserva de lei complementar para o estabelecimento de normas tributárias, da reserva de jurisdição e do direito de propriedade.

Por fim, cabe ressaltar que como a Portaria 33/2018 possui 120 dias de vacância, é possível que seja conceda a liminar pleiteada e o dispositivo impugnado nem venha a ser utilizado. Portanto, o debate está lançado e a palavra final caberá ao STF.

Publicado no jornal impresso de fevereiro de 2018.

 

Emilio Samuel. Procurador do Estado do Paraná. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Membro da Comissão da Advocacia Pública da OAB/Umuarama.

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