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Jornal Caderno Jurídico

Direito Civil e Processual Civil

Quando o Estado é seu devedor

16/2/2017 às 1h46 | Atualizado em 20/2/2017 às 11h17 - Gustavo Nicolau
Gustavo Nicolau

Em palavras bem simples, e enxugando ao máximo o chato idioma “juridiquês”, quando uma pessoa comum lhe deve dinheiro, o caminho natural a ser seguido é entrar com uma ação e pedir ao juiz que condene este devedor a lhe pagar. Essa ação (já contando recursos e burocracias) levará aproximadamente seis ou sete anos. Mas ao final desse longo período, você receberá apenas um papel no qual está escrito a palavra “Sentença” (será um “Acórdão, mas isso não importa). Esse papel não paga suas contas e não é aceito como forma de pagamento (ao menos no mercado do meu bairro).

Depois disso, será preciso uma segunda fase que vai efetivar, concretizar aquela sentença, transformando-a em dinheiro. Nessa fase (que levará aproximadamente três a quatro anos), o juiz tomará medidas concretas para cumprir a sentença, “pegando” (no juridiquês: penhorando) bens do devedor, levando-os a leilão e – com o dinheiro arrecadado – finalmente pagar o credor. (Só para dar um exemplo, a famosa Porsche do Eike Batista foi um bem penhorado).

Tudo se complica ao extremo quando o devedor não é uma “pessoa comum”, mas sim o Estado (entendido nesse artigo como o Município, o Estado ou a União). Imagine então que sua casa foi desapropriada para que uma estação de metrô fosse construída. Paciência: É ruim para você e sua família, mas bom para milhões de pessoas, que irão utilizar aquele meio de transporte. Em juridiquês, é a aplicação do princípio da “supremacia do interesse público sobre o individual”. Esse não é o problema. O problema é que o valor que o Estado te oferece não é suficiente para pagar nem o terreno no qual a casa estava. E então você vai ter que entrar com um processo para pedir o valor adicional. E é aí que ser brasileiro dói na alma (e no bolso).

Esse processo vai naturalmente ser mais demorado do que o normal, devido a alguns fatores que poucos conhecem. Em primeiro lugar, os prazos para o Estado se defender são maiores. O prazo legal para contestar uma ação é quatro vezes maior e o prazo para apresentar recursos é duas vezes maior do que para um devedor qualquer. Em segundo lugar, esse processo não irá tramitar perante um juiz qualquer, mas perante uma Vara especializada (Fazenda Pública, ou Justiça Federal), nas quais há uma demora muito maior, tendo em vista o imenso número de processos que ali chegam diariamente. Se uma sentença contra um devedor comum leva de seis a sete anos, uma sentença contra o Estado pode tranquilamente levar de 15 a 17 anos (aproximadamente).

Mas lembre-se que após esse prazo imenso, tudo o que você ganhou foi um papel, no qual está escrito a palavra “Sentença” (“Acórdão”). Em português bem claro, esse papel não paga as contas. Com esse papel em mãos, o juiz não pode “pegar” (penhorar) bens do Estado. Não dá para penhorar o carro do bombeiro, o semáforo ou o poste de luz. Aquele papel então será usado para “avisar, alertar” (em juridiquês: “precatar”) o Executivo que ele precisa pagar o que deve, pois um imenso processo judicial já transcorreu e não há mais dúvida sobre o fato e sobre o valor da dívida.

Essa sentença vale como uma “senha”, igual àquelas que você retira para ser atendido no pronto socorro. Essa senha lhe concederá (muito provavelmente ao seu filho, pois você já faleceu) o direito sagrado de entrar numa imensa fila e – a depender do Estado ou Município – levará décadas para chegar a vez de seu filho (ou neto) ser chamado e receber o dinheiro pela desapropriação de uma casa que ninguém mais lembra direito onde ficava ou quem vivia nela. Isso me faz lembrar de um Professor de Direito que sempre dizia: “Justiça tardia não é Justiça, é consolo”.

Mas como será em outros países? Afinal, há desapropriações, indenizações, intervenções, atropelamentos causados por carros do Estado em outros países também. Para manter a comparação com países sérios, é possível afirmar que após uma decisão judicial da qual não caiba mais recurso, o dinheiro é depositado na conta do cidadão em poucos dias úteis. O descumprimento de uma decisão judicial desse tipo por parte do Estado é capaz de derrubar um gabinete inteiro (no caso do Parlamentarismo) ou de configurar crime de responsabilidade (no caso do Presidencialismo). Em nossas terras, representa apenas um procedimento muitíssimo comum, corriqueiro e que une situação, oposição, moderados e extremistas num só coro: “devo, não nego, pago quando puder (e vai demorar)”.

Como havia prometido no início do artigo, não vou entrar em detalhes técnicos a respeito do assunto para não aborrecer o querido leitor, mas acho meu dever informar que leis, decisões judiciais e até mesmo a CF (art. 100) e suas Emendas Constitucionais (vide Emenda n.° 62) já tentaram dar um jeito no assunto, dando prazos e mais prazos, juros baixos e atualizações generosamente baixas, sempre em benefício do Estado e ainda assim, a fila só aumenta.

Dias atrás, o STF deu novo passo nesse cambaleante cenário, determinando que tudo seja pago até 2020! Depois de 11 anos como aluno dentro de uma faculdade de Direito e depois de 13 anos lecionando Direito para milhares de alunos, é inevitável comparar essa decisão com aquela na qual um prefeito – em época de imensos alagamentos e inundações na região – decretou a proibição de chuvas em sua cidade por 60 dias. É – com todo respeito a mais alta Corte desta Nação – um pedaço de papel tentando desafiar a realidade de um país sem valores, sem prioridades, sem princípios e sem dinheiro.

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